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Gaúcho de São Borja! – Capítulo XXI

Aeroporto do Recife – Guararapes.

 

Aeroporto de Guararapes – Recife.
 
 
Conhecendo a Europa
Enquanto os noivos voavam para o nordeste e depois para Europa, os familiares cuidaram de dar destino aos detritos deixados pela festa. Também foram eliminados os sinais do evento. A propriedade retornaria ao seu ritmo de sempre. A família de Ângela, pai e mãe, tomaram a estrada na tarde do dia seguinte. Em Porto Alegre embarcariam alguns dos seus pertences a serem levados para a capital federal. Um apartamento funcional estava à sua espera, com mobília e tudo. Levariam apenas o essencial, uma vez que boa parte do tempo Lourdes estaria em Porto Alegre com a filha.
O voo de Recife para o norte da África, onde fariam uma escala para reabastecimento e eventuais manutenções foi um pouco turbulento. Enfrentaram tempestades durante boa parte do percurso, levando os passageiros, alguns pouco afeitos aos voos de grande altitude e longo curso, a ficarem seriamente preocupados com sua segurança. Até Gaudêncio, habitualmente sereno e seguro, ficou sensivelmente abalado. Foi com alívio que ouviram o anúncio do pouso que aconteceria em poucos minutos. Graças a Deus o céu estava limpo, com boa visibilidade. Aterrissaram sem problemas. O desembarque ocorreu apenas para um breve descanso, esticar as pernas, fazer uma refeição em terra firme. Em uma hora estariam retomando o voo rumo a Paris.
Nossos viajantes fizeram um lanche apenas e foram conhecer as dependências do aeroporto que podiam acessar sem ultrapassar os limites da área de passageiros em trânsito. Quando menos esperavam era hora de voltarem a aeronave. Um dia voltariam para conhecer o Marrocos. De dentro do aeroporto haviam visto de relance o casario da cidade, com suas mesquitas, cercada de áreas semidesérticas, as plantas típicas, totalmente desconhecidas aqui no Brasil.
Aeroporto de Marrakech – Marrocos.

 

Frente do aeroporto de Marrakech – Marrocos.
 
 
A etapa restante da viagem foi mais curta. Desceram no aeroporto D’Orly e dessa vez era para saírem do aeródromo, levando suas malas para o hotel que os esperava. Era noite e a mudança de fuso horário havia mexido com seu metabolismo. Aliado às longas horas de voo intercontinental, deixara ambos alterados. O sono estava desregulado, o apetite fora do normal. Iriam demorar alguns dias para se adaptarem. De posse de seus pertences, entregaram as bagagens a um carregador. Ângela pediu que os levasse a um taxi e logo seguiam rumo ao hotel. Chegaram e Gaudêncio ficou totalmente perdido. Não entendia uma palavra do que os recepcionistas nem os carregadores falavam. Estava completamente dependente de Ângela para se comunicar.
Nos primeiros momentos viu-se a falar português com um francês que lhe fez gestos de desentendido. Quando ia falar poucas e boas ao atrevido, a jovem esposa o socorreu, falando em inglês com o interlocutor. Explicou que ele não falava sua língua, apenas conhecia o português e que não levasse a mal. Depois de se registrarem no hotel, o mesmo boy que estivera a ponto de se desentender com Gaudêncio, os acompanhou até o apartamento. Colocou as malas ao pé da cama, recebeu uma gorjeta e saiu com um:
– Au revoir madam!
            – Au revoir messieur!
            – Eta língua desgraçada que esse povo fala!
            – Sorte sua que eles não entendem o que você diz. Do contrário iria ouvir uma bela lição de civismo e moral. Os franceses são muito orgulhosos de sua língua pátria. Não admitem que alguém a fale de modo errado. Falar mal dela então, nem se deve pensar.
            – Acho que se alguém falar errado o português ou falar mal da nossa língua eu também ia desancar o sujeito.
            – Ninguém gosta que desfaçam das coisas de sua terra.
            – Vamos respeitar a casa deles, né meu amor.
            – Me ajuda a pôr nossas roupas no guarda roupa. Devem estar mais amassadas que alguém que dormiu no baú.
– Imagine, dormir no baú! Deve ser um bocado desconfortável. Não fica só a roupa amassada. O sujeito todo fica igual.
Guardaram as roupas bem arrumadas e os agasalhos que haviam trazido estavam se mostrando insuficientes. No dia seguinte iriam procurar uma loja e adquirir algo mais aconchegante, pois o frio da noite invernal lhes dera boas-vindas. No frigobar havia alguns pacotes de salgadinhos e doces que serviram para mitigar a fome pouco intensa. Depois de uma sessão de amor, primeira digna do nome desde que haviam se unido em matrimônio, dormiram embalados pelo rumor das ruas parisienses. Pela janela do apartamento podia ver ao longe as luzes da Torre Eiffel. Do outro lado era visível em alguns pontos o rio Sena, cujas águas lançavam reflexos prateados das luzes de iluminação pública dos arredores.
 
Mapa do aeroporto Orly – Paris, parte Oeste.
 
Dormiram até depois de oito horas. O café da manhã foi algo de deixar boquiaberto. Pão francês baguete, geleias, manteiga, queijos, patê, defumados e mais uma variedade de coisas que os dois desconheciam. Comeram do que sabiam não atacar seus aparelhos digestivos desacostumados de certos ingredientes. Nada mais desagradável que estar em lugar estranho e ser acometido de um desarranjo digestivo. Na portaria conseguiram um folheto turístico indicando os pontos de maior interesse. Também receberam orientação sobre locais em que pudessem adquirir agasalhos para se protegerem do forte inverno. Lá fora uma camada de uns 15 cm de neve cobria o chão. As ruas haviam sido limpas e o transporte funcionava normalmente.
Um taxi os levou até o endereço fornecido pelo recepcionista. Uma grande variedade de roupas de inverno, tanto masculinas como femininas estava em exposição. Começaram por escolher sobretudos para ambos, toucas de lá, gorros, botas forradas para os pés além de um bom sortimento de peças de vestuário em geral. Quando terminaram estava passando da hora do almoço e decidiram retornar ao hotel para deixar lá o que haviam comprado. Era impossível perambular por diversos lugares arrastando um volume considerável de roupas em sacolas e pacotes. Trajavam o necessário para se proteger do frio intenso do existente na rua, levando o resto. No térreo do hotel havia também um restaurante e foi ali mesmo que almoçaram. Depois iriam passear um pouco.
Não muito longe ficava um teatro, onde estava sendo encenada uma peça bem conceituada e Ângela convenceu o marido a leva-la para ver. Ele concordou de bom grado. Tinha feito o propósito de transformar a viagem de núpcias em um acontecimento inesquecível. O padrinho o aconselhara a não medir gastos, pois a viagem de lua de mel a esposa jamais esquece. Seja ela ótima ou péssima. O que diferia nos dois casos eram as consequências para a vida do casal nos anos posteriores. No passeio da tarde pela área circundante, chegando às margens do Sena, compraram filmes para a câmera fotográfica e para a filmadora. Registraram tomadas de todos os pontos interessantes por onde passaram.
 
Mapa do aeroporto de Orly – Paris.
 
Navios subiam e desciam pelo rio, passando sob as pontes que uniam as partes da cidade de ambas as margens. Foram a pé até a outra margem, depois voltaram e verificaram se ainda existiam bilhetes para aquela noite no teatro. Era um dia de semana, quando o afluxo de espectadores é menor e assim conseguiram os bilhetes. Em um bistrô das redondezas fizeram uma refeição leve enquanto aguardavam a hora de entrar no teatro. A representação foi ótima, apenas Gaudêncio não gostou por não entender absolutamente nada. Mesmo assim, vendo as cenas, ele se divertiu. Tratava-se de uma espécie de comédia, embora contivesse momentos de dramaticidade. Ao saírem do interior da casa de espetáculos, a neve voltara a cair suavemente. Desistiram de caminhar até o hotel e voltaram de taxi. O motorista guiava cuidadosamente pelas ruas escorregadias devido à neve que caía.
Chegaram ao hotel quando já era perto de meia noite. Se refugiaram no seu aposento rapidamente. Lá fora o fria aumentava e um leve vento começava a soprar, aumentando a intensidade da sensação térmica de frio. Na próxima semana visitaram a Torre Eiffel, o Museu do Louvre, a Catedral de Notre Damme, e um grande número de lugares pitorescos. Foram de trem ao sul da França, visitando os lugares mais importantes da região. Quando se está passeando, vendo a cada momento algo novo e diferente, imagens de encher os olhos, o tempo passa depressa. Já estavam na França há nove dias e decidiram pegar o trem para a Suíça. Começariam por Berna, centro administrativo, depois visitariam Zurique e também as principais cidades da Alemanha.
Assim passaram mais doze dias e finalmente voaram de Bohn para Roma. Visitaram o Vaticano, assistiram missa na Basílica de São Pedro, de trem foram a Milão, Veneza, Verona e chegou o dia de embarcar de volta. Estavam há 28 dias na Europa. Até chegarem em casa, teria se passado mais de um mês. Já estavam no começo de fevereiro. O inverno dava sinais de arrefecer a intensidade. Distraídos como haviam estado naqueles dias idílicos, envolvidos pelo amor mútuo, as paisagens deslumbrantes, alguns tombos nos campos de esqui que Gaudêncio fizera questão de visitar e experimentar. Por sorte não se machucara e no final havia conseguido descer um trecho menos inclinado de montanha, acompanhado da esposa. Ela temia cair e mais ainda, que o marido caísse. Não saberia o que fazer se ele se machucasse ali, num país estranho, longe de todos os familiares. Por sorte correu tudo bem. Haviam registrado tudo em fotos e filmes.
No dia 9 de fevereiro embarcaram em Roma e voaram para o norte da África, depois para o Recife no Brasil. Foi chocante chegar ao nordeste, em pleno verão, depois de enfrentar o frio europeu durante um mês inteiro. Ao entardecer do mesmo dia desembarcaram no Aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre. Foram direto para o apartamento da família Ferreira e ali se instalaram para ficarem um dia ou dois. Ângela precisava tratar de sua matrícula na faculdade para não perder o ano. Se fosse para São Borja, teria que voltar logo.
Naquela noite ligaram para a casa dos pais de Gaudêncio e também para Joaquim. Todos queriam saber o que tinham para contar, mas isso seria demorado. Ficaria para o momento em que estivessem juntos, numa boa roda de chimarrão, ou saboreando um churrasco de costela gorda. A mãe Maria Conceição quis saber do filho se a nora não estaria grávida e ele lhe falou que isso iria acontecer no momento certo. Não se preocupasse. O neto seria encomendado na hora devida. Era reconfortante estar novamente em solo pátrio. Poder falar à vontade, depois de ficar um mês limitado a trocar algumas palavras sempre com a esposa. Ele se sentira aprisionado, manietado. Queria falar, mas de nada adiantaria, pois não seria entendido. O remédio era dizer o que queria à esposa e ela traduziria para inglês. Depois de ouvir a resposta lhe traduziria novamente. Ficava tremendamente impaciente com isso. No final já havia se acostumado e jurou para si mesmo que estudaria inglês. Na próxima viagem estaria falando fluentemente. As demais línguas que pudesse também haveria de aprender.
O dia seguinte passou com os procedimentos para regularizar tudo na faculdade e a noite chegou. Haviam assistido a tantas sessões de teatro, balé, ópera, orquestras sinfônicas, canto lírico que foi um verdadeiro bálsamo passarem uma noite vendo televisão e depois se recolherem ao leito.
A adaptação à vida íntima havia ocorrido de modo sereno e suave. Ângela tinha sido muito bem orientada pela mãe e fora ao ginecologista antes de viajar para o casamento. Estava preparada para eventuais sensações dolorosas e sangramento na primeira relação, alguma sensação de dolorido nos primeiros dias. A excitação de ambos fora tamanha que tudo transcorrera de modo harmonioso. Ele soubera ser paciente e calmo no momento da consumação. Depois haviam alcançado o clímax na primeira vez, o que havia sido dito ser pouco provável. Para completar acontecera quase simultaneamente e se repetiu mais duas vezes sucessivas antes de se afastarem. Permaneceram abraçados, trocando carícias e beijos. Murmurando palavras de amor eterno ao ouvido um do outro.
No dia subsequente o no outro haviam ficado praticamente só em aviões, descendo num aeroporto, seguindo para o outro até chegarem ao destino. Só então haviam realmente começado sua vida a dois. Mas com certeza valera à pena. Os momentos vividos na fria Europa, ficariam para sempre na memória de ambos, além de estarem registrados nos filmes e fotografias que mandariam revelar. Ele queria mandar fazer isso em Porto Alegre, mas ficariam prontos só dali a três dias e não queriam esperar tanto. Faria isso em São Borja. Também tinha que chegar e providenciar a matrícula, embora tivesse avisado à secretária da escola que estaria viajando. Ela prometera reservar sua vaga, bastando apenas ele ir lá e assinar a ficha quando voltasse. Deveria lembrar de fazer isso antes de ir para casa. Não custaria nada além de alguns minutos para assinar a ficha.
No dia 13 de fevereiro embarcaram para São Borja. No aeroporto estava Joaquim com a caminhonete para levar os dois. Sabia que estariam com um bocado de bagagem a mais do que na ida, mesmo tendo Ângela deixado as roupas de inverno no apartamento em Porto Alegre. Ele os recebeu e abraçou carinhosamente, indagando:
– Como foi a viagem de vocês? Se divertiram bastante?
– O seu afilhado não gostou de não poder conversar diretamente com o povo. Ficava impaciente esperando a tradução.
– Trate de estudar inglês, alemão, italiano, francês, espanhol é até bem fácil. Muito parecido com o português.
– Já falei para ela. Na próxima viagem vou sair daqui falando de tudo. Não vou mais ficar feito bobo esperando tradução. Sabe o que é ficar mais de um mês sem dizer palavra com uma pessoa estranha? Me senti o verdadeiro bobo da corte.
– Vamos andando. Tem almoço na minha casa esperando. Depois vamos para a fazenda.
– Antes de ir para lá vou passar na escola assinar minha matrícula. A Ângela já fez a dela ontem.
– Ele está mesmo levando a sério a coisa. Isso mesmo. É o melhor que tem a fazer.
Embarcaram na caminhonete que ficara perto da pista e foram para a casa de Joaquim na cidade. A cozinheira esperava com o almoço pronto. Era tão diferente comer comida da terra natal, feita pela mão de quem se conhece. Gaudêncio até exagerou um pouco, ficando um pouco sonolento depois. Joaquim falou:
– Quer tirar um cochilo?
– Hã? Não. Vamos logo. Quero passar no colégio e depois ir abraçar o papai e mamãe.
– E eu vou ter que esperar os meus pais virem para Porto Alegre no final do mês para vê-los.
– E eu vou ficar aqui com saudades até sua volta a cada semana.
– Vamos e não comecem a se lamentar agora. A vida de casados não é só flores. Tem os espinhos que vem junto, – falou Joaquim.
Embarcaram e foram tratar da matrícula. Estava tudo pronto, só mesmo faltava a assinatura de Gaudêncio. Assim em menos de dez minutos ele estava ao volante e iam para a fazenda. Estava com saudades de dirigir. Na Europa haviam andado de trem, metrô, avião, um ou outro trecho pequeno de ônibus. Sentira falta de acelerar e sentir o motor do carro roncando sob o capô. Joaquim apenas sorria diante do entusiasmo do afilhado. Pelo visto haviam se entendido perfeitamente na cama, pois não se percebia nenhuma divergência. Tudo estava na mais perfeita ordem. Isso significava dias felizes pela frente e certamente, nos próximos anos, os filhos. Ele os consideraria como netos, embora fosse apenas padrinho do pai.
A recepção da família foi calorosa. O sorriso franco estampado nos rostos de ambos, demonstrava o estado de felicidade em que haviam voltado. Pela hora da chegada significava que haviam almoçado na cidade. Um chimarrão foi preparado com um sorriso largo e satisfeito de Gaudêncio, que disse:
– Vocês não imaginam a saudade que eu estava de um amargo bem cevado. Meu Deus do céu! Cheguei a sonhar com uma cuia e chaleira do lado.
– Sonhou e falou em sonhos. Eu acordei e ele falando em chimarrão. Até eu fiquei com vontade.
– Na próxima vez leva uma cuia e um ou dois pacotes de erva. – disse a mãe.
– Nem sei se pode. São capazes de criar caso na alfândega.
– Isso tem que se informar direito, menino.
– Mas vou mesmo. Ficar tanto tempo sem tomar um amargo, é muito ruim.
– Agora vai matar a saudade. A tarde é para isso. Esquece o serviço e vamos conversar. Pôr as fofocas em dia.
O resto do dia transcorreu em conversas, risadas, um pão de milho quentinho tirado do forno, coberto de melado com requeijão. Ai que coisa boa! Foi então que ele lembrou dos filmes que queria ter deixado para revelar. Bem isso ficaria para outro dia. Também não era nenhuma sangria desatada. Haveria muitos dias, noites, finais de semana para mostrar as fotografias. Portanto nenhuma pressa em revelar. Queria um trabalho de primeira qualidade nessa revelação e produção de cópias. Isso seria mostrado um dia aos filhos e filhas, talvez mesmo os netos, se Deus os agraciasse com essa graça.
Ao entardecer foram para a casa onde iriam morar. Estava tudo limpo e arrumado. Maria Conceição mandara uma faxineira deixar tudo impecável para a hora de os dois chegarem. Era desagradável demais encontrar a casa suja, os móveis cobertos de pó, roupa de cama com cheiro de estar ali há tempo. Os cobertores haviam sido postos no sol para ficarem em ótimas condições.
As duas semanas que restavam de fevereiro passaram céleres e estavam se separando para o início das aulas. Dona Lourdes chegaria no mesmo dia a Porto Alegre para ficar coma filha nos primeiros dias de aulas daquele ano. No primeiro final de semana Gaudêncio viajou para ver a mulher. Assim aconteceu alternadamente por quase o ano inteiro. Ora era ela que vinha, ora ele ia e nisso o ano passou. O general estava empenhado em seu trabalho no Estado Maior e raras vezes vinha junto com a esposa, cujas visitas eram feitas mais amiúde. O final do ano chegou e com isso estava marcada a formatura de Ângela. Gaudêncio havia alcançado mais um objetivo. Sua aprovação acontecera ao final do terceiro bimestre, ficando o quarto para manter média. Seu conceito na escola estava no máximo.
No momento da colação de grau estavam presentes Pedro Paulo, Maria Conceição, Gaudêncio e os pais dela. Antes houvera a celebração de missa e também um culto evangélico, pois um bom número de formandos professavam esses credos. Era importante o respeito religioso entre eles. O país é democrático e não havia religião oficial. Para concluir a comemoração, foram ao baile. Dança dos formandos, dança de formando(a) com mãe ou pai, marido, esposa. Alguns discursos e muita alegria. Haviam passado muitas horas em convivência, estudado juntos, feito trabalhos, exercícios. Agora iriam cada um atuar em um local diferente e bem provavelmente haveria poucos momentos de encontro. A família de Ângela foi a São Borja passar os feriados de final de ano. O General tirara alguns dias de folga, depois de um ano e meio de trabalho quase contínuo.
Aeroporto de Roma
 
O novo casal, agora poderia viver junto sem precisar passar mais tempo distantes entre si. Começaria agora de verdade a vida de casados. Dormiriam e acordariam juntos dia após dia. Poderiam pensar em ter filhos, cuidar deles com carinho e amor. Faze-los sentir o quanto haviam sido desejados e seriam amados pelo resto das vidas. Após o Ano Novo, Ângela parou de tomar pílulas e depois de dois meses apareceu a novidade. Estava grávida e o filho deveria nascer no mês de novembro, talvez começo de dezembro. O pai da criança por nascer ficou eufórico e fazia planos para quando o herdeiro nascesse, esquecendo completamente da possibilidade de ser uma menina e não um menino.
Os meses correram, embora para Gaudêncio parecessem não passar, tamanha era a ansiedade. Quando foram comprar as roupas para o enxoval da criança só queria coisas de cor azul, ou vermelho que é a cor principal do time do coração. Já Ângela optava mais por cores neutras, pois se comprasse rosa, poderia ter que deixar guardado para o momento de nascer uma filha. Não ficaria bem vestir um menino com roupas dessa cor. Nem tampouco uma menina na cor azul, pareceria muito normal. Não se importava com as roupas que ele escolhia, mas juntava outro tanto de amarelinho claro, bege, estampado, cores que poderiam ser usadas tanto por um menino como uma menina. No meio do ano os pais dela vieram visita-los e passaram uma semana na fazenda. No começo do ano seguinte o general passaria para a reserva e queria começar a procurar um pedacinho de terra ali perto da fazenda.
Iria colocar o apartamento na capital à venda. Com esse dinheiro, mais um pecúlio que havia feito durante os longos anos de serviço, dariam para começar uma pequena propriedade. Evidentemente precisaria de orientação, trabalhadores, pois na idade que estava não iria aprender nem suportar fazer o trabalho pesado de agricultura. Queria mesmo ter seu pomar, uma boa horta, uma vaca para tirar leite e estar perto da filha, junto com a esposa. Viveria seus dias derradeiros com a família, preenchendo o vazio que muitas vezes ficara até ali, por força do seu trabalho como militar.
 Gaudêncio se prontificou em procurar uma propriedade do tipo que o sogro queria. Inclusive nos dias que estavam juntos andaram percorrendo algumas propriedades e indagando de um ou outro sobre a possibilidade de venda. O valor aproximado, tamanho, algumas sugestões sobre o que plantar como opção de alguma renda para não virar uma área improdutiva. Os dias passaram e não encontraram o que procuravam. O casal voltou para Porto Alegre. Ângela não os acompanhou pois o ginecologista havia orientado para tomar alguns cuidados nos meses finas da gestação. O ventre estava crescendo um pouco além do normal.
Algumas semanas depois de os pais retornarem à Brasília, ela foi fazer sua consulta periódica ao ginecologista. Estavam no começo de agosto. Ao observar o ventre, medir a circunferência e depois auscultar o coração do feto, em dado momento o médico levantou o olhar, fitou o pai que a acompanhava, depois ela e falou:
– Vamos ter uma surpresa aqui.
– O que doutor? Alguma coisa errada?
– Eu não falei que tinha algo errado. Não seja apressado. Deixe-me terminar o exame depois eu falo.
E voltou ao exame, mas detalhado e demorado que o habitual. Isso deveria ser devido ao momento mais avançado da gestação, pensou Ângela e olhou o marido que sentado ao lado estava olhando ansiosamente para o médico. Depois de um longo momento escutando de um lado, depois do outro, finalmente o Dr. Raimundo falou:
– Podem preparar o enxoval dobrado. São gêmeos.
– O que? – quis saber Ângela.
– Eu disse que vocês vão ter dois filhos. Podem ser um menino e uma menina, ou dois meninos, ou duas meninas.
Os pais começaram a rir, misturando lágrimas com riso e não paravam. Por fim o médico falou novamente:
– É uma grande benção. Só quero alertar que também uma grande responsabilidade. Cuidar de uma criança é trabalhos. Imaginem duas ao mesmo tempo. Mas certamente os avós vão ajudar muito a cuidar desses bebês.
Ele fez recomendações especiais, inclusive seria conveniente irem a Porto Alegre para fazerem um exame de ecografia, por enquanto só existente por lá. Ali na fronteira ainda não estava disponível esse equipamento. Um exame desses seria importante para informar se os fetos estavam em desenvolvimento normal, se talvez fosse preciso uma internação na UTI com incubadora e algum tratamento especial. Depois de prescrever tudo isso e recomendar o maior cuidado no transporte, bem como na vida em casa até o nascimento, se despediu pedindo o retorno ao consultório dali para frente a cada mês. Queria acompanhar mais de perto essa gestação para não ser tomado de surpresa.
Ao chegarem em casa e contarem aos avós Pedro e Maria, os mesmos ficaram satisfeitíssimos. Logo depois foi a vez de Joaquim receber a novidade e também entrar em agitação nunca imaginada. Como gostaria de partilhar esse momento com a finada esposa. Certamente ela estaria olhando para eles lá do céu e se alegrando. Joaquim julgou melhor viajarem para capital de automóvel e poderem fazer o caminho em etapas. Isso permitiria descansar por algum tempo sempre que a gestante se sentisse cansada. No avião haveria o ganho com o tempo, mas uma vez no ar, não haveria o que fazer antes de encontrar um lugar para aterrissar. Assim decidiram irem os três. Pedro se encarregaria de cuidar de tudo e Joaquim acompanharia o jovem casal de futuros pais na viagem. Poderiam alternar na direção e não se cansar em demasia.
Iniciaram a viagem bem de madrugada e seguiram pelo asfalto inaugurado poucos anos antes. Era bem conservado e conseguiram cobrir boa parte do caminho antes de a temperatura subir demais. Estavam perto de Santa Maria e decidiram que descansariam ali, até o sol ficar menos intenso. Depois então seguiriam até a capital, pois dali seriam pouco mais de trezentos quilômetros. O exame pedido de ecografia além de alguns outros estavam marcados para o dia seguinte. Poderiam descansar e bem cedo irem aos laboratórios para coletar material e depois irem fazer a tal ecografia.
No momento em que apareceu na pequena tela do aparelho o coração de um dos fetos batendo, depois uma cabeça, logo outra, as duas próximas, permitindo visualizar apenas parte de cada uma. A alegria dos dois foi indizível. O exame foi minucioso e detalhado. O Dr. Raimundo mantinha amizade com o especialista da capital e ao saber da recomendação, ele passara a tratá-los com mais zelo ainda. Ao terminar o exame, fez uma chapa, semelhante a um raio-x, apenas de tamanho pequeno. Depois relatou detalhadamente tudo o que pudera observar durante o exame. O estágio de desenvolvimento fetal, o número aproximado de semanas da gestação, análise comparativa dos pesos e outros informes que só os médicos entendiam mesmo. Ao lhes entregar o resultado falou:
– Podem ficar muito tranquilos. Os filhos de vocês estão ótimos, o tamanho é quase de crianças que nascem de gestações de único feto, tamanhos praticamente iguais. Querem saber o sexo?
– Isso é possível?
– Não posso dizer 100% de certeza, mas pelo observado são um menino e uma menina.
– Obrigado doutor. Suas palavras nos deixam mais tranquilos. Tínhamos ficado preocupados, pois é comum gêmeos nascerem muito pequenos, ou um bem menor que o outro.
– Os de vocês são quase do mesmo tamanho e até o final devem chegar a mais de dois quilos cada um. Por isso que esse abdômen está tão distendido.
Ângela se vestiu e saíram da sala de exames. O olhar de vê-los estava ansioso:
– Pode sossegar, padrinho. Provavelmente é um casal e estão muito bem, diz o doutor. Tem quase o mesmo tamanho e vão pesar mais de dois quilos.
– Caramba. Pena que eu não pude ver.
– Veja aqui tem uma chapa que o aparelho faz. Mostra um pouco dos dois.
O homem idoso, olhou atentamente a pequena peça de material, coberto de pontos de cores variadas, onde se conseguia ver alguma coisa parecida com uma forma humana, mas sem detalhes. Seus olhos se encheram de lágrimas.
– Padrinho, não chore. Eles vão lhe chamar de vovô também.
– Eu choro de alegria, meus filhos – disse e abraçou a ambos.
– Já temos o exame mais importante. Precisamos só esperar os outros ficarem prontos até depois de amanhã.
– Vamos para o apartamento de papai e mamãe. Ainda não deve ter sido vendido e tenho comigo a chave.
Embarcaram no automóvel e foram para lá. Deixaram o carro na vaga da garagem e subiram. A noite anterior haviam passado numa hospedaria, pois não haviam encontrado vaga em hotel e era muito tarde para irem até o apartamento.
Depois de deixarem Ângela no quarto descansando, os dois homens foram até o supermercado fazer algumas compras para passar os dois dias até a sexta feira depois do almoço. Talvez viajassem depois até Santa Maria, para prosseguir na madrugada seguinte. O apartamento estava entregue aos cuidados de uma imobiliária para venda. Os móveis estavam ali até o momento da efetivação da venda. Ângela se encarregou de cozinhar para eles e ocuparam o tempo indo ver algumas coisinhas diferentes para os bebês, uma vez que agora sabiam com certeza serem dois e também que, quase certo, era um casal. Por isso poderiam comprar tudo dobrado, nas cores azul e rosa.
 
Aeroporto de Casablanca
 
Foi o que fizeram e voltaram com uma pequena montanha de sacolas cheias. Não faltariam roupas para os dois pequenos. O avô postiço como ele se intitulava, tinha dado sua contribuição, comprando um carrinho duplo para duas crianças e também cobertores e outras peças de roupas. Não poderiam comprar coisas demais com o risco de faltar espaço no carro e terem que despachar por transportadora.
A viagem de retorno correu normalmente. Enquanto estavam no apartamento, fizeram uma chamada para Brasília e comunicaram aos avós maternos a novidade. Faltou pouco para os dois largarem tudo e virem naquela noite mesmo para o sul. Não fosse tão pouco tempo que faltava para a reserva, teriam vindo. No último momento haviam mantido o controle e não fariam loucura nenhuma. Esperariam as crianças nascerem e viriam conhecer os netos.
Na próxima visita ao doutor Raimundo, levaram os exames todos prontos. Ele ficou muito satisfeito e tranquilo quando viu o laudo do colega da capital. Sabia agora que não haveria necessidade de se preocupar com uma intervenção cesariana para evitar sofrimento fetal ou da mãe. O desenvolvimento indicava que nem estufa precisariam.
De fato, no dia 28 de novembro de 1983, nasceram Paulo Joaquim Ferreira Neves e Maria de Lourdes Ferreira Neves. Ele pesando 2,260 kg e ela 2,180 kg. Ela nasceu primeiro e ele por último, havendo entre eles um intervalo de 10 minutos. Mal Maria de Lourdes chorara, nasceu Paulo Joaquim e não demorou também em pôr sua boca no mundo. Foram pesados, medidos e limpos. Depois foram vestidos e colocados nos braços da mãe que os aguardava ansiosa. O pai estava ao lado e olhava embevecido para a esposa. Era um sonho realizado. Mais tarde faria uma chamada para Brasília comunicando o nascimento aos sogros. Igualmente informaria de que tudo correra muito bem. Poderiam ficar descansados.
Logo depois avisou ao padrinho que se encarregou de ir até a fazenda avisar os avós paternos. A fazenda entrou em festa. Os empegados todos estimavam demasiadamente Gaudêncio e também Ângela. O nascimento de um casal de filhos era uma verdadeira benção.
O apartamento em havia sido vendido mobiliado como estava. O dinheiro fora depositado em uma conta poupança para não haver desvalorização demasiada. Gaudêncio tinha duas propriedades em vista e esperava o sogro vir para leva-lo a ver ambas. Ele decidiria qual iria comprar. Os preços eram semelhantes e cabiam no orçamento que ele tinha. Se houvesse necessidade de algum suplemento não havia impedimento em fazer um adiantamento.
Os avós maternos vieram para os festejos natalinos e nesse período foi feita a compra da propriedade. Tão logo o sogro se desvencilhasse dos compromissos com o exército, viriam morar ali. Enquanto isso as crianças cresciam a olhos vistos. A mãe tinha leite em abundância de modo que não faltava alimento para os dois pequenos gulosos. Os avós de ambos os lados, mais o avô postiço Joaquim, pareciam dois pares de velhos corujas, com um corujão ao lado paparicando os netos.
O tempo passou, eles foram batizados, o registro civil fora feito no dia imediato ao do nascimento. Depois de um ano e meio de idade ganharam uma irmã de nome Lourdes Conceição Ferreira Neves e dali a dois anos nasceu Gaudêncio Ferreira Neves, completando a família. Para quem era filho único, afilhado de padrinho sem filhos, era um bom número. Os pais eram um desvelo só com os pimpolhos e os avós completavam o grupo. Viviam uma verdadeira vida familiar, todos residindo próximos. Apenas Joaquim, quando não estava viajando, ficava junto na fazenda para não perder um dia do crescimento das crianças. Isso enquanto pode se dar ao luxo de viajar. Depois de 1990, sua saúde começou a declinar e foi preciso ficar mais recluso. Poderia eventualmente viajar, porém acompanhado de alguém para prover socorro em qualquer emergência.
O general aprendeu a fazer uma porção de coisas na sua propriedade. Até tirar leite aprendeu. Tinha ao adquirir o imóvel já plantado um pomar, algumas parreiras e por isso ele tinha especial apreço. O Brasil foi redemocratizado em 1986, tendo assumido a presidência da República o Vice José Sarney, em lugar do finado Tancredo de Almeida Neves. O filho caçula de Ângela e Gaudêncio nasceu em 1987, quando o plano cruzado já estava naufragando, vindo logo a seguir o plano cruzado dois, depois plano Bresser e outras invenções que não conseguiram domar o dragão voraz da inflação na economia nacional.

 

O restante da história…fica para ser contado em outro momento. Agora ele não tem importância.
Aeroporto de Roma, visão interna.
 

Foto de Roma – Itália.

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