Edificio da estação da luz. |
Plataforma de embarque da estação da luz. |
Estação da Luz lotada em dia de falhas no sistema. |
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3. – O presidente bossa nova!
Poucos meses após o desembarque em solo brasileiro os dois imigrantes viram surpresos acotecer um dos fatos mais importantes da história do país. No dia 24 de Agosto de 1954, ocoria o suicídio de Getúlio Dornelles Vargas, em pleno exercício da presidência da República Federative do Brasil. Em seu lugara assumiu o vice Café Filho
Um período agitado seguiu-se ao evento, culminando com o afastamento do presidente em exercício por motivos de saúde, tomando posse em seu lugar o presidente da Câmara dos Deputados Carlos Luz. Mais intrigas e desavenças levaram a deposição deste último e em seu lugar assumiu Nereu Ramos, presidente do Senado.
Com o estado de sítio instalado, o governo foi transmitido à Juscelino Kubitschek de Oliveira, tendo como vice João Goulart, em princípios de 1956. Teria início o período de governo que prometia cumprir uma etapa de 50 anos em 5. Nesse meio tempo nossos estivadores já estavam habituados ao novo trabalho. Os corpos não reclamavam mais do esforço supremo de manejar diariamente centenas, de sacas de café dos armazéns para as plataformas de carga dos navios e mesmo para os porões dos mesmos. Quando não havia carga de café a ser realizada, eram outros produtos, nessa época ainda não embalados em grandes conteiners, a serem descarregados e os braços dos carregadores eram requeridos.
Houve períodos em que, para vencerem todo movimento, os turnos de trabalho eram quase ininterruptos, inclusive nos sábados, nos domingos e feriados. A legislação estabelecia que deveriam ser pagos valores majorados por se trabar de horas extras trabalhadas, mas os controladores da força de trabalho procurvam abocanhar sempre uma boa fatia desse recurso. O sindicato atuava, negociava, realizava protestos pacíficos de reivindicação da implantação do que a lei mandava e os chefes relutavam em curmprir o estabelecido. Geravam com isso um clima de insatisfação entre os trabalhadores.
Manoel e Cláudio procuravam manter-se afastados na medida do possível desses movimentos, mas não poderiam ficar para sempre alheios. Os colegas os começaram a apontar como renegados, traidores e outros epítetos. Não restou alternativa e começaram a participar timidamente das manifestações. Aos poucos sua participação tornou-se mais ativa e chegaram a ser convidados a integrar uma comissão de negociação com os chefes. Mais afoito que o cumpanheiro, Manoel aceitou, ficando Cláudio na espera para ver o que iria resultar. Foi durante uma reunião dessa comissão para discutir os detalhes das propostas a serem apresentadas, que um destacamento de polícia invadiu o local onde estavam e levou todos para o distrito.
Ali começaram a interrogar um e outro. Quando chegou a vez de Manoel, quase por último, a notícia se espalhara por todo cais e uma grande aglomeração de trabalhadores se formou em plena madrugada diante do distrito. Eram mais de dois mil reunidos diante do prédio. Chegaram em silêncio e se postaram ali imóveis. Quando um grupo de agentes foi sair para cumprir uma ordem recebida, foi impedido de sair. Um deles mais afoito puxou da arma para abrir caminho a bala, mas foi contido a tempo pelo superior:
– Você está louco, rapaz? Enfrentar essa multidão! Eles nos fazem em pedaços em dois segundos e não vamos a lugar nenhum. Calma.
Um mulato enorme, membro da diretoria do sindicato, postou-se diante dos policiais e falou:
– Diga ao delegado para liberar nossos companheiros, ou nós vamos derrubar seu distrito e botar fogo. Ninguém estava fazendo nada de errado. Por quê eles estão presos?
– Nós apenas estamos cumprindo ordens. Não sabemos de nada mais.
– Mas nós sabemos quem está por trás dessa prisão. Os chefes do porto que queremo manter a gente no cabresto. Suprimindo nossos direitos para encher os próprios bolsos. Pode chamar o delegado aqui fora conversar com a gente.
– Está bem. Eu vou dar o seu recado, mas não sei o que isso vai dar.
– Nós somos muitos e vocês, por mais que tenham uma porção de armas, são poucos e não terão tempo de matar a todos. Sem contar que isso daria um sururu danado. Iria chover jornalista aqui, até deputado ia aparecer para dar palpate. É bom que isso se resolva na paz. Soltem nossos parceiros e nós vamos embora sem violência.
O comandante do grupo quis voltar com todos para o interior, mas os trabalhadores os cercaram e foi dito:
– Seus homens ficá aqui, até o senhor voltar com o delegado. Pode ir que não fazemos nada, apenas por garantia.
Os dois subalternos foram rodeados e ficaram sem ação. Tremiam de medo, pois nada poderiam fazer contra uma multidão daquela proporção, ainda contando com a semiobscuridade da rua mal iluminada. Quando Menoel estava sendo guiado à presença do interrogador, o agente voltou do exterior e deu o recado ao delegado. Este ouviu boquiaberto o recado dado a meia voz, arregalou os olhos e foi espiar pela janela, puxando uma pontinha da cortina. Era visível dali uma imensa multidão reunida diante do distrito.
Pegou o telefone e ligou para o comandante geral na capital dando conta da situação. Este por sua vez, tendo sido acordado no meio do sono, quis saber quem dera a ordem para prender o grupo de trabalhadores. O delegado não soube dizer ao certo, procurando encontrar uma boa explicação. Em verdade os chefes do grupo que controlava o trabalho no porto o haviam procurado, dizendo que era um grupo de arruaceiros e estavam combinando manifestações, com violências e tal. Por isso, pensando em se antecipar a acontecimentos desagradáveis, ele tomara por sua conta a decisão de realizar a prisão. Agora estava sem saber o que fazer. A soltura simplesmente, sem nenhuma ação como contrapartida lhe parecia inaceitável.
– O senhor prendeu trabalhadores que estavam reunidos pacificamente por ordem de quem? Minha não foi. Os chefes do trabalho no porto não são autoridades para fazer isso. Portanto solte os homens e lhes peça desculpas. Não me apareça nenhuma reclamação contra o senhor em decorrência disso, ou lhe transfiro lá para o lugar mais distante e perdido desse estado. Fui claro.
– Sim senhor! Sim Senhor!
Desligou o telefone e ficou um momento em silêncio, tentando se recompor.
– Venha aqui, Jarbas!
Jarbas era o virtual sub-delegado. Assumia o comando na ausência do delegado.
– Pois não, delegado. O que vamos fazer?
– Vamos ter que soltar os homens. O chefe de gabinete do secretário me falou que se isso der em merda, me transfere lá pro cafundó do Judas.
– Mas assim, sem mais nem menos? Nem ao menos uma boa prensa para eles aprenderem a não se meterem a besta?
– Nenhuma violência, Jarbas. Não é o seu cargo que está a perigo. Pensa você que quero ir lá para uma grota qualquer e mofar por lá um bom par de anos?
– Mas são mais de 20. Isso vai dar um sururu danado aí for a, quando eles encontrarem os colegas, não acha.
– Tem dois homens nossos nas mãos deles lá fora. Vamos levar esses daqui lá for a e os soltamos quando soltarem nossos dois. Uma troca justa. Não discuta minha ordem.
– Vamos já cumprir sua ordem.
O delegado vestiu o paletó, colocou o chapéu na cabeça e esperou até os presos serem trazidos para as proximidades da porta. Saiu e a meio caminho do portão parou dizendo:
– Os companheiros de vocês já vão sair. Podem soltar meus homens.
– Os seus homens serão soltos quando nossos companheiros estiverem aqui fora, sendo soltos também. Antes disso, nada feito.
O delegado virou-se e fez sinal ao Jarbas para trazer os detidos. Em dois minutos eles sairam um a um e ficaram formando um grupo compacto ali perto.
– Vou mandar soltar os seus colegas e vocês soltem os meus homens. Está bem assim?
– Combinado, delegado. O senhor é um homem inteligente.
Ele teve vontade de dizer umas poucas coisas, mas preferiu ficar quieto. Não poderia avaliar qual seria a reação daquela multidão, se suas palavras não fossem bem recebidas. Melhor ficar quieto e não caçar encrenca gratuita. Fez um gesto aos seus homens para que soltassem os detidos. No mesmo instante os mesmos começaram a caminhar para a saída e os dois policiais foram soltos, voltando rapidamente para junto dos colegas. Haviam passado um tempo bem cheio de temores. Se aquela turba resolvesse descontar em seus ossos o que talvez supusessem que os colegas haviam passado, não saberiam o que esperar.
A voz forte do mulato se fez ouvir:
– Nossos colegas estão livres e aqui entre nós. Vamos para casa.
– Urrrra! Ip! Urra! Viva nosso sindicato!
– Viva! – foi ouvido em altos brados.
A partir desse momento a multidão que se mantivera em silêncio, calada, começou a falar, quase toda ao mesmo tempo e transformaram a rua em um alarido bastante forte. Por toda parte luzes eram acesas e logo desligadas, pois ao deparar com a quantidade de pessoas na rua, os moradores ficavam assustados. Aquela quantidade de gente poderia facilmente invadir as casas e praticar uma porção de insanidades. Mas nada aconteceu, apenas uma ou outra voz mais forte falava na força dos trabalhadores que estariam cada vez mais unidos.
Cláudio demorou a encontrar o amigo Manoel e quis saber dele o que acontecera. O relato foi curto, pois mal haviam iniciado a reunião, quando o recinto for a invadido pela força policial e os levara para o distrito. Apenas um membro da comissão, no momento havia ido buscar um documento guardado em uma sala nos fundos, escapara da detenção e certamente for a ele que alertara os demais. Isso foi confirmado por Cláudio. Acordara com um burburinho na pensão e logo soubera que os colegas da comissão haviam todos sido presos, acusados de arruaça e ninguém sabia de mais o que. Deveriam se reunir em frente ao distrito, em silêncio. Assim havia sido feito e agora estavam ali, livres graças a Deus.
Já estavam há quase dois anos trabalhando no porto e a documentação de que precisavam para se locomover por todo território nacional, estava em ordem. Manoel começou a pensar seriamente em fazer um balanço de suas economias, deixar o serviço do cais, que alias já o estava cansando, para tentar uma sorte melhor em São Paulo ou uma das cidades próximas. As indústrias estavam em plena instalação e se chegasse cedo, poderia conseguir um lugar com maior facilidade. Como sempre ouvira seu pai dizer, quem chega primeiro bebe água limpa.
A lembrança do mês na cadeia, ainda estava viva em sua memória. Não tinha intenção de ter uma segunda dose desse remédio. Aceitara fazer parte da comissão para negociar de maneira civilizada o cumprimento das leis trabalhistas vigentes e sem mais aquela se vira detido, prestes a enfrentar mais um período de cadeia. Não era esse seu programa. Não era covarde, mas não tinha vocação para herói. Queria trabalhar, juntar sua economia, talvez adquirir um negócio próprio e levar a vida. Manteve isso consigo. O amigo continuava firme e decidido a tornar-se dono de um bar, um botequim ali mesmo em Santos. Dificilemente mudaria de opinião.
No interval para o almoço no dia seguinte, foi até a agência da Caixa Econômica e verificou o saldo de suas economias. Não era nenhuma fortuna. Todavia em mais um ou dois meses teria o bastante para se manter, vivendo parcimoniosamente, durante um bom tempo. Numa emergência, poderia mesmo trabalhar como mecânico, até surgir uma oportunidade de ingressar na indústria que começava a surgir nas cidades próximas da capital, principalmente São Bernardo do Campo, São José dos Campos e outras. Manteve segredo sobre suas intenções. Participou das negociações com os patrões e tiveram êxito parcial. Por algum tempo os ânimos ficariam calmos, até surgir nova motivação para mais discussão.
Antes disso Manoel prometeu a si mesmo, estaria longe dali. Iria para São Paulo, se possível encontraria uma vaga para fazer preparação em uma escola industrial e ingressaria na indústria. Seria alguém com uma ocupação menos cansativa, onde os ossos não estivessem todos doloridos ao final do dia. Era forte, seus músculos eram resistentes, mas o trabalho por horas prolongadas, sempre no limite, era extenuante. Não era isso que viera procurar. O suplemento nos ganhos conseguido reforçou um pouco sua economia. Quatro meses depois do episódio da prisão, entregou seu pedido de desligamento do sindicato e do trabalho.
O gerente da Caixa Econômica fez a transferência do saldo de sua conta para uma agência central da capital. Não convinha sacar o dinheiro e perder o crédito dos juros do período e reabrir uma nova. Outro motivo era carregar uma soma considerável em espécie e se expor ao risco de ser assaltado. Isso era procurar problemas de graça. Arriscou a pergunta:
– Você vai em busca de que em São Paulo?
– Vim de Portugal para encontrar trabalho. Aqui encontrei, mas não é o que eu quero. Tenho conhecimentos de mecânica. Sou jovem e posso estudar, fazer cursos industriais e ingressar na indústria que está sendo implantada.
– Com certeza, Manoel. Você vai se dar bem lá. Procure pelo SENAI. Lá eles tem cursos industriais e sempre há novas turmas sendo iniciadas. Preparam os operários para as montadoras de carros. A Willys está com uma indústria, a Volkswagen também vai construer, fábricas de peças estão surgindo por todo lado. Isso vai gerar empregos de montão.
– Eu vou fazer parte disso, pode ter certeza. Obrigado por sua gentileza e bondade, senhor. Eu havia mesmo pensado em levar meu dinheiro na mala, mas assim, ficá muito mais fácil.
– Perder os juros o user roubado? Nunca, meu rapaz. Vai que seu dinheiro suado está seguro com a gente.
A despedida do amigo Cláudio foi um pouco melancólica, mas ele tinha seu objetivo e não queria saber de mudar. Nada havia a fazer a esse respeito. Acertou as contas com a dona da pensão, arrumou suas roupas na mesma mala com que viera de Portugal, acrescida de uma sacola de plástico com um fecho, pois tinha agora algumas roupas a mais do que quando viera da Europa. Embarcou no trem de passageiros e percorreu a subida da serra até a capital. Algumas horas depois, desembarcou na Estação da Luz, próximo do anoitecer. A dona da pensão de Santos havia lhe indicado um endereço onde poderia se hospedar, não muito distante dali.
Indagou a um carregador se conhecia o endereço e ele lhe explicou como chegar até lá. Para alguém acostumado a passar horas carregando sacas de café às costas, levar a mala e sacola por uma dezena e meia de quadras até o endereço indicado, não era nada. Chegou já noite fechada, mas por sorte conseguiu um quarto pequeno, provisório. Quando vagasse um maior mudaria para lá. Pagou uma semana adiantado e se acomodou. O jantar simples foi servido e logo experimentava uma comida à moda paulista, da capital. Era pouca diferença do que costumava comer na pensão no porto. Antes de dormir escreveu uma carta para os pais, informando de sua mudança recente. Quando tivesse um endereço mais definitivo mandaria para poderem escrever a ele com mais segurança.
O dia seguinte foi cosumido em conhecer o centro e os bairros próximos. De onde estava hospedado, não era difícil chegar à escola mais próxima do SENAI, no bairro do Brás. Região de predominância de população de origem portuguesa. A escola Roberto Simonsen é uma das mais antigas de São Paulo. Com alegria descobriu que bastava caminhar umas poucas quadras para chegar a escola. Deu uma ou duas voltas à quadra, prestando atenção a tudo e todos. Queria familiarizer-se com o lugar, gravar na memória todos os pontos de referência para se orientar.
Feito isso, procurou pelo portão de acesso e foi pedir informações. Lhe apresentaram uma boa lista de opções de cursos. Havia para todos os gostos. O que lhe chamou atenção especial era um que estava habilitado a fazer, por ter trazido consigo os documento comprobatórios de seus estudos em Ancede. Haveria uma nova turma iniciando no começo do mês seguinte e as matrículas estavam abertas. Informou-se dos custos e soube que no momento os cursos estavam em sua maioria gratuitos, devido à necessidade premente de uma série de indústrias em instalação. Todas procurvam por profissionais habilitados em operação de tornos, fresas, prensas, soldagem e uma grande variedade de especializações.
Alunos em aula no SENAI http://bras.sp.senai.br/ |
Ficou em dúvida sobre fazer torneiro mecânico ou soldador. Pensou um pouco e concluiu que torneiro era melhor por não oferecer os riscos da soldagem. Além de lidar com o perigo de correntes elétricas de alta intensidade, ou combustíveis de chamas a elevadíssimas temperaturas, o brilho produzido no processo era nocivo aos olhos. Mais tarde poderia fazer algum outro curso, se o momento exigisse e existisse demanda para encontrar trabalho mais qualificado em outro setor. Fez a matrícula e saiu satisfeito. Imaginara encontrar dificuldades de iniciar sua preparação e já no primeiro dia estava matriculado. Anotou tudo que iria precisar, o dia do início, os horários e o material.
As exigências eram poucas no quesito material. Seria conveniente ter seu próprio paquímetro e micrômetro. Seriam provavelmente os components mais caros do conjunto. A escola dispunha desses equipamentos, mas eram poucos para todos os alunos e assim teriam que ser usados escalonadamente. Isso tornava o processo mais lento. Quem pudesse disport desses materiais, levaria vantagem. Recebeu informação do local onde poderiam ser adquiridos. Iria verificar se suas posses permitiriam esse gasto. A duração do curso básico seria de seis meses e os melhores alunos poderiam fazer um aprofundamento por mais seis meses. Obteriam assim um certificado de nível acima dos outros.
Manoel saiu dali com o firme propósito de ser um dos primeiros. As aulas eram ministradas nos três turnos e ele escolheu o turno da noite. Assim poderia procurar um trabalho para ocupar o dia e ganhar algum dinheiro. Não sabia o que o esperava nos próximos meses e seria complicado se chegasse o dia em que não pudesse mais pagar sua hospedagem, alimentação e transporte. Aqui não teria a quem pedir auxilio. A mãe, o pai e irmãos estavam longe, impossibilitados de socorre-lo. Precisava ser previdente para não sofrer mais tarde.
Foi imediatamente procurar os materiais de que precisaria e no caminho encontrou uma oficina de automóveis. Perguntou pelo proprietário e logo se viu diante de um cearense, de cabelos ralos, barba por fazer e relativamente sujo de graxa. Sinal de que estava trabalhando, sem muito tempo de cuidar de seu aspecto exterior, ali lidando com peças e partes sujas dos veículos.
– Boa tarde, senhor. Eu sou Manoel Silvério Ferreira. Vim de Portugal faz dois anos e pouco. Lá eu trabalhei em uma oficina de automóveis.
– Sabe fazer o que numa oficina, bichim?
– Sei fazer de tudo um pouco. Sei limpar carburadores, regular platinados, trocar velas, rolamentos de rodas, desmotnar caixas de câmbio.
– Se estiver disposto, pode vir amanhã e vamos fazer uma experiência. Se tu tiver jeito para o negócio, tem lugar sim. Stou precisando mesmo de mais um que o serviço está aumentando cada dia.
– Fazemos um teste e depois falamos de remuneração.
– Eu sabia que ele ia falar de dinheiro. Português que não gosta dinheiro, nunca vi não.
– O senhor não pensou que ia trabalhar sem receber, pensou?
– Tô mangando com oce, Manoel. Acho que logo vão lhe chamar de Mané. Aqui todos mundo que chama Manoel acaba virando Mané.
– Isso não faz muita diferença. Então está certo. Eu venho amanhã cedo.
Saiu e foi até a loja onde havia os paquímetros e micrômetros disponíveis para venda. Tinha tido nas mãos esses instrumentos na oficina em Ancede, mas não sabia ainda manejá-los direito. Com certeza isso seria ensinado no curso. Ao perguntar pelos equipamentos, lhe apresentaram um de fabricação alemã e outro de fabricação Americana, tando do paquímetro quanto do micrômetro. Os de fabricação alemã, lembrou eram da marca que o dono da oficina tinha lá em Portugal. Em seu íntimo pensou em comprar um desses. Era marca conhecida. Perguntou o preço e descobriu que o dinheiro de que dispunha ali consigo era insuficiente. Teria que retirar um trocado da conta na caixa.
Como o curso iria inicia apenas no começo do mes, teria tempo de esperar pelo crédito dos juros e então sacar o dinheiro. Isso não lhe prejudicaria os rendimentos. Mesmo por que se iniciasse o trabalho na oficina, talvez nem precisasse disso. Poderia ganhar o suficiente para pagar pelos dois instrumentos. Agradeceu e prometeu voltar outro dia para comprar. Estava apenas verificando preços. Saiu e passou por uma papelaria onde se muniu de papel de cartas, envelopes, canetas, tinta, lapis, borracha, blocos de anotações, cadernos para não lhe faltar nada ao iniciar os estudos.
Chegou à pensão com um pacote e foi para seu quarto. No pacote havia o nome da papelaria e perguntaram o que significava aquilo. Estava iniciando algum curso?
– Estou sim. Matriculei-me hoje no curso de torneiro mecânico na escola do SENAI aqui do bairro. As aulas começam no início do mês.
– Vamos ter aqui mais um futuro operário das fábricas. A cidade está cheia de gente fazendo isso. O SENAI não está vencendo formar tanta gente. Abriram mais unidades em cidades como Santo Amaro, São Bernardo, São Caetano e por aí vai.
– Mas é uma boa coisa esses cursos. Assim as indústrias vão ter gente preparada para fazer o trabalho.
– A gente fica satisfeito com isso, Manoel. Precisa estudarr mesmo. Emprego vai ter à vontade. O que falta para muita gente é vontade de largar a vadiagem para ir fazer um curso, – disse a dona da pensão.
– Não olhe para mim, dona Marinês. Eu sou empregado e não estou precisando de curso nenhum.
– E eu lá falei para você? Estou falando desse bando de vagabundos que andam por aí pedindo esmolas, um prato de comida, mas trabalhar que é bom! Isso eles não querem nem ouvir falar.
– Acho que o Brasil vai ter um belo futuro. Do jeito que está indo, vai ser quase um paraíso, – disse Manoel.
– Não sei se vai chegar a tanto, mas quem quiser poderá ficar numa boa situação, isso é certo. Basta trabalhar e no final do mês o dinheirinho cai no bolso.
– Dona Marinês, me acorde amanhã cedo. Vou começar na oficina do Chico ali na rua perto da praça. Entendo um pouco de mecânica e vou ganhar uns cobres ali enquanto faço o curso. Depois vou procurar emprego melhor.
– Pode dormir sossegado que eu lhe acordo, Manoel.
– Boa noite para todos.
Foto do Brás antigo. |
Prédio antigo necessitando de conservação. |
Foi para seu quarto, ainda o pequeno pois os demais estavam ocupados. Desembrulhou os materiais e pegando do papel de cartas, pôs-se a escrever novamente para os pais. A primeira mal tinha sido postada de manhã e já tinha novidades para contar. Também escreveu para Cláudio, narrando as novidades e refazendo o convite para vir também para São Paulo. Haveria facilidade de encontrar trabalho. Seria bom estarem os dois ali juntos. Estava tendo facilidade de estabelecer relacionamentos com pessoas, mas alguém conhecido lá da terra natal era diferente.
Na manhã seguinte partiu cedo, levando uma roupa mais velha para ser usada na oficina e foi para lá, depois do café da manhã. Encontrou o seu Chico abrindo o portão de acesso. Morava nos fundos, em uma casinha pegada ao galpão da oficina.
– Mas e não é que o portuga veio memo!
– Bom dia, seu Francisco!
– Bom dia Mané!
Ajudou a mover as pesadas portas que fechavam a entrada, permitindo o acesso ao patio e o galpão onde estavam os macacos e elevadores para suspender os veículos ou suas peças mais pesadas.
Trocou de roupas em um quartinho no canto, guardou a roupa limpa numa bolsa e saiu, apresentando-se para trabalhar. O provável patrão lhe indicou um Jeep que estava em mau estado, colocado em um canto.
– Pode soltar o motor daquele ali. Vamos ter que desmontar inteiro e reformar. Está batendo biela, queimou junta de cabeçote. Lascou inteiro.
– Eu não tenho ferramentas.
– As ferramentas estão aqui, Mané! – indicou um quadro onde havia chaves de boca, estrela, chave inglesa, alicates de vários tamanhos e formatos, além de uma grande variedade de outras ferramentas ainda desconhecidas de Manoel.
Parou diante do quadro, lembrando as chaves que provavelmente iria precisar. Separou o que achou seria suficiente e levou até o veículo. Levantou o capô do motor e viu que realmente ali a coisa estava feia. Havia vasado óleo por todo lado, a correia estava arrebentada. Precisaria de uma reforma geral e em regra. Observou bem e viu que era igual a outros que ajudara a desmontr em Portugal. Poucas coisas eram diferentes. Começou por soltar as partes removíveis do motor. Retirou o distribuidor, o carburador, soltou as mangueiras do radiador, retirou o gerador elétrico, os cabos de velas, colodando tudo em uma bandeja que havia ali.
Depois de deixare o espaço livre para trabalhar, pôs-se a soltar os parafusos que prendiam o motor à caixa de câmbio. Para isso teve que pegar uma forração para colocar no chão pois havia parafusos acessíveis apenas pela parte de baixo. Quando terminou de soltar tudo, foi a vez de desparafusar os suportes que prendiam o propulsor ao chassi do veículo. Por volta de 10 horas chamou o dono da oficina e lhe indicou que estava pronto para ser retirado do lugar.
– Mané, ocê já terminou? Parabéns.
– Pode conferir, seu Chico.
Depois de conferir tudo, Chico falou:
– Vamos retirar esse bicho logo. Puxe a talha dali para cá. O mecanismo com correntes e polias suspenso por um trilho fixado nas vigas deslizou para o lugar. Foram fixados ganchos em pontos apropriados, formando uma alça dupla. Ali foi engatado um gancho maior e as correntes começaram a rodar, esticando o Sistema, forçando o motor para cima. Foi preciso desimpedir um ou outro ponto de enrosco e lodo iniciaram a suspensão do motor.
Uma vez for a do lugar, a talha foi deslizada novamente para perto de um suporte, onde depois de ajustar a algura, o motor voltou a ser aparafusado para a desmontagem antes da reforma.
– Agora quero saber se você sabe desmontar esse bicho. Posso confiar em você?
– Não tem problema, patrão.
– Acho que você vai se dar bem aqui, Mané.
– Vou pegar as chaves adequadas e guardar essas outras que usei até agora.
Chico foi atender um cliente que acabara de entrar no patio com seu veículo para ver de que se tratava e combinar o serviço se fosse o caso. No meio do caminho encontrou com o outro mecânico mais experiente e falou a ele:
– Esse portuguêsinho caiu do céu para nós, Zé.
– Ele entende do assunto?
– Soltou o motor do Jeep em um instante. Precisa ver com que eficiência.
– Vou ver de perto.
– Ele agora vai começar a desmontar o motor. É bom olhar para não fazer alguma bobagem.
– É o que pretendo.
Cada um seguiu seu caminho e Manoel começou o serviço de desmontagem do motor. O mecânico ficou perto, fazendo um outro serviço que trouxe para perto e enquanto ficava de olho no novo ajudante. Era admirável a destreza com que manejava as chaves, retirando os parafusos em ordem, colocando todos eles um um lugar para facilitar a remontagem posterior. Em poucos minutos o cabeçote estava solto e foi removido. As hastes do comando de válvulas foram removidas e a pesada peça colocada sobre a bancada. Um momento de descanço para ir ao banheiro e depois ele voltou para retomar o trabalho.
Antes de mais nada, removeu a tampa de óleo do cárter e aparou o resto de óleo que ali havia, em uma lata encontrada no canto. Feito isso soltou os parafusos que prendiam o cárter ao bloco do motor e o removeu. Era chegado o momento de remover os mancais das bielas para retirar os pistões do interior das camisas. Nesse momento Chico retornou e falou:
– Vamos colocar ele agora numa posição mais adequada. Soltando essa trava daqui, podemos girar o suporte e deixar a parte de baixo mais acessível.
Viraram o motor deixando os parafusos em posição que facilitava o acesso e desmotagem. Dessa forma, o serviço que Manoel pensara ser o mais difícil, se tornava relativamente fácil. Não tardou e remoreu todos os parafusos. Quando chegou a hora do almoço, faltavam apenas remover os mancais do vira-brequim, ou árvore de manivelas.
– Manoel, deixa o resto para depois do almoço. Parabéns, acho que está aprovado, pois nunca vi alguém desmontar um motor em tão pouco tempo. Você sabe o que faz.
– Esse suporte tornou tudo mais fácil. Se tivesse que ficar por baixo, seria bem mais difícile.
– Isso serve para tornar o trabalho mais confortável.
– Vou me trocar e ir almoçar.
– Pode ir e não esqueça de voltar.
Bairro do Bras, foto histórica. |
Tropa policial no Brás.
http://saopauloparainiciantes.com.br/2012/05/bras-dicas-para-comprar-roupa-barata-e-de-qualidade.html
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Andre Gonçalves10/05/2017 at 9:29 PM
Muito bom, top demais !!!