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Construindo a moradia.
As semanas seguintes foram de intenso trabalho. Aos poucos a beira dor rio ficou pronta para atracar o barco e fazer a carga/descarga da madeira. Na continuação as toras começaram a se acumular nas proximidades. Derrubaram as araucárias e imbuias mais próximas, para facilitar o transporte até a margem. Duas juntas de bois emprestadas pelo vizinho Francisco, junto com uma carreta, se encarregavam de transportar os pesados troncos para perto da margem. Cada árvore fornecia sozinha uma porção de toras, especialmente as araucárias que alcançavam mais de trinta metros de tronco próprio para madeira serrada.
Depois de um mês e meio estavam terminando a preparação e transporte das toras. Nessa época chegou o recado do dono da serraria, avisando que o suprimento de madeiras serradas estava ficando pronta. Em uma semana poderiam ser transportadas para a propriedade. O senhor Carlos, passando rio acima, viu o local preparado e parou para verificar. Deu algumas orientações complementares e prometeu trazer as madeiras, telhas e mais alguns suprimentos já adquiridos no povoado. Dessa forma logo estariam começando a construir a casa.
No pasto as vacas haviam terminado de parir, trazendo um bom número de machos, junto com algumas fêmeas. A pastagem abundante se encarregava de manter os animais com boa saúde, bem alimentados. As novilhas estavam cobertas e os touros agora pastavam tranquilos, embora separados, pois ficando juntos poderiam se empenhar em brigas. Não era conveniente permitir que isso acontecesse, pois poderiam se matar em alguns casos, dependendo da teimosia que um deles demonstrasse.
Ao completarem-se dois meses da morte de Trovão distante, num dia de sol, perto da hora do meio dia, ouviu-se o apito do barco. Era Carlos trazendo as madeiras serradas, além dos demais suprimentos. Teriam muito trabalho para descarregar tudo e levar para a sede da propriedade, bem como carregar as toras, que ficariam empilhadas sobre o convés do barco. O propulsor viera na potência máxima do povoado até ali. Tivera que vencer a correnteza do rio, levando a carga próxima da máxima capacidade. Na volta poderia levar um pouco mais, uma vez que o esforço necessário para descer a correnteza, seria menor.
Foi necessário fazer três viagens para levar todas as madeiras, incluindo o pagamento da serragem, bem como o transporte. O vizinho Francisco e dois dos seus filhos ajudaram a transportar as madeiras, enquanto os irmãos Batista, ajudavam os auxiliares de Carlos no processo de carregamento das toras. Foi uma semana intensa de transporte de madeiras e outros suprimentos para a propriedade dos irmãos, trazendo toras no retorno. Lua Serena, com o filho nos braços, via maravilhada a pilha de tábuas, vigas e ripas aumentando gradualmente. Logo estariam iniciando a construção de uma casa na qual iriam morar. Tivera oportunidade de ver casas feitas de tábuas em algumas oportunidades, mas nunca morara em uma delas.
O inverno estava chegando perto do fim. Provavelmente no próximo inverno estariam morando na casa nova. A cabana ficaria como lembrança do tempo que vivera ali sozinha com o avô. Ela era a última representante da família primitiva que sobrevivera. Agora tinha seu filho, nascido de seu amor pelo homem branco ao qual ajudara o avô Trovão salvar da morte quando ali chegara, ferido com tiro de arma de fogo. Mais alguns dentes haviam nascido na boca do pequeno. Agora era comum testar sua nova capacidade para morder tudo que estivesse ao seu alcance.
Depois de receber todas as mercadorias para construir a casa e entregar as toras do pagamento, João e Pedro cuidaram do plantio de milho, feijão e mandioca, além de um pedaço de arroz num trecho de várzea. Depois de feito o plantio, iriam começar a construção da casa. Os peões estavam sempre ocupados nos cuidados com os animais. As novilhas estavam começando a apresentar os sinais de sua prenhes. Em alguns meses teriam um belo lote de bezerros para apartar. Seria necessário contratarem mais um peão para ajudar. Queriam terminar a construção até o começo do ano de 1997, quando João faria uma visita à família.
Era chegado o momento de apresentar a nova família que constituíra. De tempos em tempos vinha uma carta ou um recado trazido por tropeiros que vinham buscar erva mate para vender na região de Passo Fundo e Santa Maria. Iria verificar a possibilidade de obter um suprimento de dinheiro para investir na nova propriedade. Tinham muitas instalações para concluir e assim melhorar a propriedade. Os vizinhos Senhor Francisco e filhos, ajudaram bastante na construção. O pagamento foi feito com algumas bezerras para aumentar a criação de gado da pequena propriedade familiar. Estavam ali para se ajudarem mutuamente.
No final de janeiro, a casa estava praticamente pronta. Faltavam apenas os móveis e estes teriam que ser trazidos de fora. Não havia ali quem fabricasse. A outra opção seria contratar um marceneiro para fazer o serviço no local, mas isso no momento estava fora das possibilidades. João e família, juntaram-se a um grupo de tropeiros que seguia para o Rio Grande do Sul. Foram alguns dias longos de caminhada, mas afinal chegaram ao destino. Antônio, Isabelita e Isabel, lhes fizeram uma calorosa recepção. Isabel, logo estava com o irmão, ainda caminhando devagar, levando-o a todos os cantos da sede da Estância.
Lua foi recebida com afeto pelos sogros, pelos cunhados e pela enteada Isabel. Passaram duas semanas revendo todos os conhecidos das redondezas. João matou a saudade que sentira de todos os cantos da propriedade que ajudara a construir anos passados. Tinha vontade de ir até Santa Maria, visitar os tios que ainda estavam morando por lá, embora já não mais em atividade. Os filhos agora ocupavam os cargos de capataz e administradores das propriedades. Os donos haviam se mudado para a cidade e apareciam de vez em quando para ver como estavam andando as coisas. Mas o tempo disponível era curto e enviou uma carta para cada um, informando detalhadamente o que acontecera com sua vida. Enviava convite para lhe fazerem visitas no novo endereço.
Agora estava empenhado em levantar do nada uma nova propriedade. Ali, apesar das periódicas dificuldades devidas às oscilações econômicas do país, havia uma significativa prosperidade. Ao retornarem, trazia uma boa soma em dinheiro para investir, além de tratar da produção dos móveis, portas, janelas da casa. Trouxe também dois peões para o trabalho na fazenda. Conseguira duas parelhas de bois com um carroção e uma carreta para transporte. Seriam úteis na nova fazenda. Agora mesmo serviam para transportar algumas coisas que de outra forma seria inviável levar.
João aproveitara para batizar o filho, na ocasião em que o padre estava na vizinhança. Até agora fora sempre chamado de Curumim, menino em guarani, mas era preciso lhe dar um nome. Lembrou o avô Afonso. Luz Serena aprovou e assim ele foi tornado cristão com o nome Afonso Batista. Levaria algum tempo para Lua acostumar-se a chamar o filho por esse nome, mas não poderia ficar sendo para sempre “curumim”. A viagem de retorno foi demorada. Os bois puxando as carretas não conseguiam desenvolver uma velocidade boa, pois a estrada era difícil e a carga que levavam considerável. Dessa forma gastaram quase um mês para chegar.
No entardecer de um dia no final de fevereiro, finalmente estavam chegando diante da casa, agora pronta. Pedro, mesmo sem as ferramentas apropriadas, soubera improvisar e fizera janelas, portas, mesmo alguns móveis rústicos para servirem no início. Era possível habitar na casa. Não mais teriam que viver na cabana. Pedro ficou contente com as novidades trazidas por João e também com o nome que o sobrinho agora recebera. Pedro lembrou que ainda não tinha família. Sempre dedicara seu tempo ao trabalho e esquecera de encontrar uma mulher para ser sua companheira. Ainda havia tempo para isso. João, depois de anos viúvo, com uma filha quase moça, encontrara nova esposa. Ele também haveria de encontrar alguém pela redondeza.
Os carros foram descarregados, os bois soltos no pasto existente nas proximidades da casa e logo se puseram a comer avidamente o capim abundante ali existente. Os novos utensílios foram colocados em seus lugares, os leitos arrumados e jantar preparado. O fogão fora erguido num canto da ampla cozinha, feito de pedras de arenito e chaminé de tijolos. Era amplo e funcionava bem, não espalhando fumaça no ambiente. O pequeno Afonso, havia se acostumado com as casas na fazenda dos tios e avós, portanto não estranhou a nova casa. Apenas estava curioso por explorar todos os recantos, pelo menos onde a luz do candeeiro alcançava. No escuro não se aventurava. Temia talvez a existência de algo invisível ou então objetos com que pudesse se chocar.
Os novos peões foram integrados à equipe, aliviando a carga dos três que vinham se ressentindo do excesso de trabalho. Agora daria tempo de terem uma folga de vez em quando. Afinal também eram filhos de Deus e gostavam de dar uma volta vez ou outra. Nos meses do outono que iniciava logo, além de colher o milho, cortar e guardar as ramas de mandioca, preparar o melado de cana para consumo no resto do ano, era preciso extrair o máximo de erva mate do meio dos pinheirais. Era usada no consumo próprio e vendida para os tropeiros que levavam o produto para o litoral, bem como para o Rio Grande do Sul. Pedro estava empenhado em melhorar o sistema de moagem da erva, aperfeiçoando o acionamento dos monjolos. Usaria uma roda movida pela água que tornava o mecanismo mais leve e eficiente. Permitiria a preparação de um volume bem maior do produto, em menos tempo.
João ajudou no que podia. Haviam sobrado tábuas e vigas da construção da casa e estas foram usadas nas instalações da moagem de erva. Na hora de fazer o serviço estava tudo pronto. Prepararam um grande estoque de erva, trabalhando em parceria com os vizinhos seu Francisco e filhos, além de contratarem dois trabalhadores temporários. Valia a pena pagar a diária e depois obter o lucro com o produto vendido a bom preço. Muitos moradores da região extraiam a erva e apenas preparavam, mas não tinham como moer. Isso os fazia perder uma parte do valor final, pois o comprador precisaria arcar com os custos de moagem, sem contar com as possíveis perdas ocorridas nesse processo.
Durante o outono nasceu o lote de bezerros, filhos das novilhas trazidas por Pedro no ano anterior. Houve apenas uma perda. Uma cobra cascavel estava nas proximidades e mordera o animalzinho ao chegar perto de seu local de repouso. A roça de milho rendera boa colheita, permitindo alimentar os animais e também debulhar para fazer farinha. Um pilão adaptado do moinho de erva, era usado para esmagar os grãos de milho. Depois com uma peneira, separava-se o fubá. Com ele era preparada a polenta, bolos e pão, tendo um pouco de farinha de trigo misturado. Trigo era produto difícil nesses tempos. Precisava ser usado com parcimônia, pois vinha de longe. Na região ainda não existiam moinhos que fizessem farinha de trigo.
Com tudo isso a dieta da família ficou enriquecida. Além das frutas, mandioca, leite e pinhão, havia agora também o fubá, o peixe do rio era sempre uma fonte de proteína, pois existia em abundância. Em meio a essa azáfama toda, Pedro teve uma ideia. Pegou um cepo de madeira, a chapa de uma lata que estragara o fundo, recortou-a e ajustou sobre o cepo. Antes de fixar, usou um prego e fez uma grande quantidade de furos na chapa. Depois envolveu o cepo com a chapa, pondo os furos com as farpas viradas para fora. Dessa forma fabricou um ralador de mandioca. Construiu um cavalete e instalou a engenhoca de modo a ser possível fazer girar com a força da roda d’água.
Com ajuda de João e um dos peões, arrancaram uma boa quantidade de mandioca. Lua também ajudou e passaram horas raspando as mandiocas para remover a terra e a casca externa. Ralaram a mandioca e da massa extraíram o polvilho. Puseram a massa para secar, obtendo um bom suprimento de farinha que torraram para melhor conservação. Os vizinhos quando viram o resultado, pediram para usar o ralador e também prepararam uma remessa de polvilho, mas principalmente a farinha era o que lhes interessava. O polvilho ficou de ótima qualidade, permitindo a preparação de uma porção de pratos saborosos.
A esposa de Francisco ensinou Lua fazer biscoitos e outros alimentos que o polvilho permitia fazer. Aos poucos a jovem indígena, até questão de dois anos passados, vivendo de caça, pesca e frutos colhidos na floresta, se transformou em uma exímia dona de casa. O filho, agora com mais idade e atendendo pelo seu novo nome, apreciava cada prato que a mãe preparava. Geralmente era o primeiro a experimentar qualquer novidade. A farinha de mandioca era ótimo suplemento alimentar em várias situações. Junto com a carne, leite, farofas, pirão de peixe e angu, virado de feijão era ingrediente básico.
O inverno terminou e nova primavera estava aí. A rotina da propriedade se estabeleceu. Plantar, pastorear o gado, controlar as ervas daninhas na roça, cultivar a horta onde cresciam belos repolhos, tomates, alfaces e demais hortaliças. Lua tomara especial gosto pelo cultivo da horta. Deixava os vegetais para preparação das refeições, a poucos passos da cozinha, facilitando sua vida significativamente. Em outubro, quando o plantio estava sendo terminado, Lua sentiu novamente que algo diferente ocorria em seu corpo. Não tardou e tudo se confirmou. Estava novamente grávida. O pequeno Afonso teria um irmão ou talvez irmã. À noite, quando se deitaram, abraçou João delicadamente e lhe cochichou no ouvido:
– Meu valente guerreiro!
– O que você tem, meu amor? Quando você me chama assim, alguma coisa está acontecendo.
– Você vai ser pai outra vez. Nosso curumim vai ter um irmão.
Os primeiros instantes foram de estupefação e depois se transformaram em uma grande alegria. O coração de João, já estava conformado com o fato de ficar velho e ter apenas um filho, além da filha que morava com os avós. Saber que seria pai novamente, foi suficiente para lhe tirar o sono por algumas horas. A excitação era muito grande para poder dormir. Contemplou longamente o filho adormecido em seu leito ao lado, acariciou o rosto e cabelo da mulher, depois as curvas de seu corpo, terminando por se amarem apaixonadamente. Pensara seriamente que iria morrer na ocasião em que fora ferido. Agora tinha mulher, um filho que dormia ali ao lado e uma companheira como Lua Serena, pronta a lhe dar mais uma vez a graça da paternidade. Finalmente dormiram abraçados e exaustos.
No dia seguinte não se conteve e contou a novidade ao irmão. Nesse momento Pedro falou:
– Eu vou procurar pela redondeza uma moça que me aceite por marido e vou formar família também.
– Excelente ideia, Pedro. Viver sozinho, mesmo em família, é muito triste. Precisamos de uma mulher e filhos para nos sentirmos realmente vivos.
– Trabalhei tanto desde pequeno que acabei esquecendo desse lado da vida. Vi nossos sobrinhos nascer, mas sempre imaginava que para mim isso era coisa distante. Quase passo pela vida sem lembrar que eu existo.
– Pois tire um dia de folga, um domingo, feriado e dê umas volteadas pelas vilas e povoados. Há de ter uma guria por essas bandas que se agrade de um gaúcho guapo como tu. A casa é grande e para começar podemos morar todos aqui mesmo. Depois com o tempo, fazemos outra para vocês.
– Estou precisando de umas ferramentas para marcenaria e acho que vou encontrar isso só lá por Curitibanos. No caminho vou bombeando para ver se encontro alguma prenda que me agrade.
– Então vai logo. Não perca mais tempo, mano velho!
– Vou preparar tudo e parto amanhã. Vou até o povoado e lá me informo a melhor forma de chegar até a cidade. Então sigo caminho e em quatro ou cindo dias estou de volta.
– Nem precisa se apressar demais. No momento até que o serviço está folgado. Mais para frente aperta e fica complicado.
No dia seguinte Pedro seguiu para o povoado próximo e de lá foi para Curitibanos, onde pretendia comprar algumas peças de ferramentas que não dispunha. Eram necessárias para alguns detalhes de marcenaria mais fina que queria utilizar para concluir a parte do mobiliário da casa.
Durante a viagem para o Rio Grande, João vira a atividade de construção da ferrovia EFSP-RG. Uma parte da obra estava em andamento, vindo de Santa Maria. O trecho fora demarcado e dividido em lotes. Em cada lote um contingente de trabalhadores passava os dias mourejando na movimentação de terra, escavação do leito, pequenos túneis, aterros. Sobre os riachos era preciso construir pontes reforçadas, com pedras, barras de ferro. O trem passando por cima era diferente de uma carroça ou uma tropa de bois. Exigia-se uma estrutura firme e resistente. Havia ouvido dizer que a estrada iria passar não longe de onde moravam, apenas na margem oposta do rio. Torcia para que não decidissem passar a estrada pela sua nova propriedade. O transporte de trem, lhe haviam dito, era coisa boa. Rápido, barato e seguro, mas a ele não trazia boas lembranças, uma vez que acabara com o negócio das tropas. As mulas tinham sido substituídas pelas locomotivas e vagões no interior de São Paulo e algumas regiões de Minas Gerais.
Talvez Pedro trouxesse novidades ao voltar de Curitibanos, com relação à estrada de ferro. Quando ainda lidava com tropas, vira um grupo de pessoas, percorrendo aquele sertão, deixando marcos em diversos pontos. Estavam estudando a viabilidade de construir uma estrada de ferro por ali. Quase ninguém acreditava nisso naquele tempo. Depois com a queda do império e advento da república, parecera ter morrido na casca a ideia. Estiveram enganados. O projeto estava em andamento e, dia mais, dia menos, veriam os trilhos passar em algum ponto daquelas plagas.
Pedro retornou depois de uma semana. Chegou acompanhado de uma bela mulher. Jovem, de cabelos louros e feições delicadas. Montava um cavalo zaino e apeou com destreza. Nem esperou por ajuda. Sinal de que pelo menos montar a cavalo sabia e era ágil. Era filha de um pequeno sitiante do outro lado do rio e aceitara sem delongas casar-se com ele. Estava há tempo esperando por um moço que a pedisse em casamento. Filha caçula de uma família de cinco irmãos e mais seis irmãs, boa parte ainda solteiros, não titubeara em aceitar. Haviam ido até um juiz de paz, bem como aproveitado a presença do padre na região e celebraram o casamento.
Nos primeiros dias dormiriam em duas camas de solteiro, até que Pedro fizesse uma de casal. O resto viria com o passar do tempo. Felizmente ele encontrara as ferramentas de que necessitava e se abastecera com alguns recursos mais modernos que facilitariam o seu trabalho. Naquela noite fizeram um jantar mais elaborado para comemorar o enlace matrimonial. A jovem era despachada, hábil cozinheira e também costureira. Trazia em sua bagagem uma máquina de costura acionada a mão e poderia costurar as roupas da família. Uma preciosa aquisição. Os peões com frequência usavam de suas facas e tiras de couro para remendar os fundilhos de suas calças, desgastadas de tanto andar montado. Com certeza apreciariam uma roupa mais refinada costurada em máquina.
Lua ficou encantada com a máquina, coisa que nunca vira. Ficou curiosa por ver funcionando, mas se absteve de mexer com medo de causar algum dano ou mesmo se ferir. Pedro falara a esposa Rosa Maria que a cunhada era descendente de índios e estava no começo de sua segunda gestação. Dessa forma haviam comprado alguns pedaços de pano para costurar roupinhas para criança, cueiros, faixas e casaquinhos. Eram coisas que se usava em quantidade, especialmente nos primeiros meses de via do pimpolho.
Em Curitibanos Pedro ouvira vários rumores sobre a estrada de ferro. Porém ainda não havia sinais de início dos trabalhos na região. Sabia-se que o outro ponto de início da construção era a vila de Ponta Grossa no Paraná, seguindo uma frente de trabalho no sentido de São Paulo e a outra no sentido sul. A última parte pelo visto seria através do vale do Rio do Peixe, parte do território contestado pelos governos dos estados de Santa Catarina e Paraná. O processo fora julgado favorável ao governo catarinense, mas o Paraná não aceitava a demarcação definitiva, gerando um clima de insegurança entre os moradores. Não sabiam se pertenciam a um ou outro estado. Deveriam se dirigir às autoridades de um ou outro lado? Ninguém sabia.
O que resultava dessa desavença era o fato de que tanto um quanto outro governo usava de sua autoridade sobre as terras devolutas para conceder títulos de propriedade a quem os requeresse. O que não raro causava conflitos. Mas o que mais preocupara a todos em geral, tanto de um quanto de outro lado, era a concessão de uma larga faixa de terra à companhia construtora da ferrovia, para exploração da madeira, loteamento e colonização. Isso estava preocupando especialmente aos posseiros, como o caso de João e Pedro, uma vez que apenas ocupavam a terra e não dispunham de recursos para legalizar a propriedade junto ao governo. Aliás nem sequer sabiam a qual dos governos estaduais deveriam ir para requerer, caso tivessem condições para tanto.
Como a ferrovia ainda parecia coisa distante, deixariam para se preocupar com ela quando chegasse a hora. Por enquanto tratariam de fazer progredir sua propriedade, implantar benfeitorias, fazer roças, pastagens e criar seu gado. Quanto melhor estivessem financeiramente, melhores chances teriam para sair de dificuldades no momento oportuno.
Pedro tratou de fazer nos próximos dias uma bela cama para nela dormir com a esposa. Essa por sua vez logo tomou pé da situação e começou a se empenhar em ajudar. Participava dos cuidados com a horta, limpeza da roça e até ia junto com o marido nas lides com o gado. Por precaução ele não a deixava participar das ações mais arriscadas, com medo de que se ferisse com gravidade. Tendo visto os olhos de Lua admirando a bela cama que fizera, decidiu fazer uma também para o irmão. Aproveitou a que usavam, apenas adaptou uma cabeceira e pé trabalhados. Dessa forma também a cunhada tinha uma cama bonita, não apenas um estrado com um saco cheio de palhas encima. O colchão era feito de tecido macio, mas forte, recheado de palha de milho.
Toda manhã a palha era remexida para ficar mais fofa e depois coberto com um lençol. A jovem esposa, embora conhecendo os detalhes da vida, era inexperiente em questão de homem. Com humildade perguntou à cunhada algumas coisas a respeito, sendo que ela também aprendera sozinha. Nunca convivera com sua mãe, nem tivera irmã. Na verdade, se tornaram confidentes uma da outra e se ajudavam. Maria Rosa, imaginou que logo também estaria grávida, e precisaria das orientações de Lua. A família morava há três léguas de distância, tornando inviável um pedido de ajuda à mãe ou irmã. Via em Lua uma amiga, companheira e apoio.
Os meses passaram, o filho de Lua nasceu, com ajuda de Maria Rosa, embora também fosse inexperiente. Mas Lua já sabia como era e a orientou. Logo seria sua vez, pois engravidara no terceiro mês depois do casamento. Assim, dentro de pouco tempo seria ela a estar deitada, aos cuidados de Lua para ter seu filho. Dessa vez João escolheu para o filho o nome Roque, em homenagem ao mártir Roque Gonzalez. O avô Afonso com certeza ficaria contente. Ele próprio recebera o nome em homenagem ao outro mártir, Afonso Rodrigues.
Pedro por sua vez estava num contentamento sem tamanho. Em questão de dois a três meses Rosa Maria lhe daria o primeiro filho. Pedira a João para escrever uma carta aos pais informando de seu casamento e do próximo nascimento de um filho. Na mesma ocasião também já foram informados da nova gravidez de Lua. O que ninguém esperava era a chegada de Antônio, Isabelita, Isabel e um dos netos. Haviam se juntado a um grupo de tropeiros e conseguiram chegar ao povoado. Dali vieram de carona com Carlos, que casualmente estava subindo o rio levar mercadorias a um morador alguns quilômetros acima. Soou o apito algumas vezes e atracou.
Com cuidado desembarcou os passageiros. Ao ouvir o apito insistente, Pedro saltou sobre o cavalo que estava selado e foi na direção do rio. Ao chegar teve a maior surpresa. Decidiu deixar os viajantes descansando na beira do rio enquanto ia em busca da carroça para transportar as bagagens e também a eles mesmos. Ao retornar tão depressa, deu a impressão de que Seu Carlos apitara por apitar, mas logo souberam o motivo. Em poucos minutos a carroça estava a caminho do rio para trazer os viajantes e suas bagagens. Amarrados à parte traseira, iam o cavalo de Pedro e outro para servir ao sobrinho que viera junto.
Embarcaram tudo e Antônio foi tangendo os bois, enquanto tio e sobrinho iam na frente. Mesmo com os cavalos andando a passo, acabaram chegando à casa cerca de 500 m na frente. Lua, mesmo estando de resguardo, levantou e veio receber os sogros com o recém-nascido nos braços. Ao seu lado Maria Rosa ostentava seus quase sete meses de gravidez, o que levou Isabelita a gritar de longe:
– Mis hijas con mis nietos!
O pequeno Afonso, agora com dois anos de idade, correu ao encontro da carroça. Antônio parou e o ergueu para cima. Logo estava abraçado à avó e a irmã. O primo não mereceu muita atenção, apenas um leve aceno. Ao parar a carroça no pátio, logo estavam se abraçando, Pedro apresentando a esposa à família, Lua mostrando o filho ainda com sinais do parto recente. Antônio parou, olhou longamente ao redor e meneou a cabeça em sinal de aprovação, antes de falar?
– Bela terra, meus filhos. E que pinheiros mais altos. Olha ali, que árvore é aquela?
– Aquela é uma imbuia, pai. Uma madeira para móveis e esquadrias que só vendo para crer.
– Ali são pés de erva mate, se não estou enganado.
– Sim pai. Aqui tem bosques inteiros de erva mate.
– Que maravilha. E as pastagens ficam onde? Estou vendo só um pastinho de nada ali na frente.
– O pasto fica mais para baixo, pai. Tem áreas de pastagem natural, tem os chamados faxinais, onde crescem capoeira e mato mais baixo. É onde fazemos a roça para plantar. Depois a gente mostra para o senhor. Agora vamos descansar e contar as novidades.
– Eu por mim ia agora conhecer tudo. Estou tão curioso.
– Quedate tranquilo, mi viejito! – falou Isabelita. – Tenés tiempo mas tarde para ver los animales.
– Mas é muito bonito aqui, meus filhos. Uma maravilha.
Sentaram-se na varanda e logo havia uma cuia de chimarrão rodando. João estava solícito com os pais e também com a esposa que dera à luz no dia anterior. Por sorte haviam construído a casa com cômodos sobressalentes para as eventualidades de visitas. Pedro naquela tarde preparou sem demora duas camas improvisadas para acomodar os pais. Para o sobrinho e a filha Isabel havia as camas de solteiro que ele e Maria Rosa haviam usado nos primeiros dias de casados. Ninguém dormiria no chão. Talvez fosse conveniente fazer um suprimento extra de palha de milho para reforçar os colchões e assim ninguém amanhecer com as ripas do estrado desenhadas nas costelas.
As visitas ficaram até o nascimento da filha de Pedro. Era uma menina, loura igual a mãe, mas com os olhos e face do pai. Ela foi chamada Isabelita em homenagem à avó. Quando a pequena completou um mês de vida eles se despediram e voltaram para sua casa. Diante da situação de ver o pai e a madrasta, com dois irmãos seus para cuidar, Isabel decidiu ficar ali, pelo menos até os pequenos terem um pouco mais idade. A viagem de volta foi feita novamente em companhia de uma tropa. João levou os pais e o sobrinho até o povoado, onde providenciou a companhia para a viagem.
Despediram-se, prometendo voltar. João, no entanto, sabia que dificilmente isso se realizaria. Tanto Antônio, quanto Isabelita estavam idosos e provavelmente não resistiriam a nova viagem naquelas estradas, depois de alguns anos. A idade cobra um tributo alto do organismo das pessoas
Décio Adams
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