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Leis são discutidas e aperfeiçoadas.
Na noite anterior ao novo dia de descanso, Minck conseguiu sair furtivamente de casa, subindo se titubear no penhasco. Estava levando uma lista com as dúvidas que gostaria fossem esclarecidas pelo amigo Arki. Ao chegar no lugar habitual, uma pequena nuvem ocultava a sua estrela. Teve um momento de desagrado, pois se não conseguisse ver a estrela, seria impossível comunicar-se com o amigo. O que ele não sabia que Arki não estava limitado por tais obstáculos. Como num passe de mágica, viu uma mancha clara se abrir em meio à núvem, onde sua estrela brilhou e piscou. Logo executou o costumeiro bailado, seguido de um forte clarão vindo em direção à Terra. Foi o tempo de piscar os olhos e ouviu Arki dizer ao seu lado:
– Seja bem-vindo, amigo! Como passou a semana?
– Em passei muito bem. Espero que você também possa dizer o mesmo.
– Eu não sou sujeito a algumas flutuações de humor que vocês humanos enfrentam. Mas posso te garantir que meu trabalho rendeu bons frutos.
– Fico contente em saber. No dia seguinte ao da nossa viagem pelas estrelas, passamos a tarde sentados aqui. O Mestre Zósteles e eu, conversando sobre algumas coisas que vimos na viagem. Surgiram umas dúvidas que poderíamos ter esclarecido lá, na hora, mas nem ele, tampouco eu, nos demos conta disso.
– Mas ainda há tempo para esclarecer o que estiver na minha competência. Só não vou responder o que eu não souber. Mesmo estando à serviço do Soberano, não sei de tudo que acontece, nem por que ou como acontece.
– Fiz uma pequena lista do que eu quero perguntar. Pode me explicar como aqueles pássaros imensos naquele planeta conseguem voar sem mover as asas? Nós observamos os albatrozes e as gaivotas que batem as asas e depois voam um tempo com elas paradas. Mas aqueles pássaros gigantescos não movem as asas nem para levantar voo.
– Aquilo que vocês chama de pássaros, são na verdade máquinas. Elas precisam das asas para voar, mas o que os impulsiona para frente são poderosos motores, localizados nas asas. Por isso as asas não se movimentam.
– Motores? Como esses motores conseguem fazer isso?
– Não sou entendido em aeronáutica, mas sei que eles queimam um combustível líquido e isso produz a impulsão. Como isso acontece exatamente, também não sei lhe dizer.
– E aquelas “carroças” compridas que andam sobre duas linhas, também usam motores?
– Usam motores, apenas de tipo diferente. Aquelas linhas que vocês viram, são os trilhos, feitos de ferro. É um metal que já é conhecido em alguns lugares aqui na Terra.
– Para que servem essas máquinas? Transportar pessoas ou mercdorias?
– Elas fazem as duas coisas. Há algumas que transportam pessoas, enquanto outras transportam grandes quantidades de mercadoria.
– Também não entendemos como os navios andam pelo mar, sem as velas que usam aqui na Terra. Acho que entendi. Eles também são movidos por motores de outro tipo. Também queimam combustível?
– Você foi brilhante na sua dedução, amigo Minck. O combustível que eles queimam, produz aqueles rolos de fumaça que saem daqueles tubos apontados para cima. São as chaminés.
– Sempre senti os olhos arderem quando a mãe faz fogo no fogão e no começo produz bastante fumaça. Essa fumaça que esses motores produzem não faz mal a saúde das pessoas?
– Faz com certeza. Naquele planeta que visitamos, estão perto de atingir o limite seguro de poluição do ar. Logo vão começar a sofrer as consequências, na forma de mudanças do clima, aquecimento da superfície do planeta.
– E por quê continuam a lançar fumaça?
– Eles ainda não aprenderam a manter suas indústrias funcionando, realizar o transporte, de modo a não produzir poluição.
– Essa tal “poluição”, se eu entendi direito, é a sujeira no ar e na água, ou então o que é?
– Sem dúvida, amigo. Chama-se poluição à toda sujeira do ambiente, tanto no ar, na água e sobre a terra. Pode imaginar se todos os moradores da sua aldeia jogassem o lixo no meio da rua, como ficaria tudo?
– Seria uma sujeira sem fim. Começaria a ficar tudo cheirando mal, haveria uma infestação de moscas, mosquitos, ratos e não sei mais o que.
– Isso numa aldeia pequena, com poucos habitantes. Imagine uma daquelas “cidades”, onde viu aquelas casas empilhadas umas sobre as outras. Ali vivem milhões de pessoas muito perto umas das outras. Consegue avaliar a quantidade de “lixo” que isso significa?
– Nem sei contar até um milhão, muito menos calcular o monte de lixo que esse número de pessoas produz todos os dias.
– Aí está o grande problema. O progresso traz benefícios, mas também gera diversos problemas. O segredo é alcançar o progresso, evitando os problemas. Produzir, transformar, transportar, sem fazer sujeira no ar, água e solo.
– Me ocorreu uma ideia agora. Com tanto lixo sendo jogado por algum lugar, não existe o risco de chegar uma hora em que não exista mais água para beber?
– Você tocou num problema crucial. Como já deve ter observado, a água dos oceanos é salgada e não serve para beber. Nos lugares bem ao sul e ao norte, o frio é muito intenso e ali a água está congelada. O gelo não contém sal, mas está longe e na forma sólida.
– Eu nunca vi gelo. Já ouvi falar, mas não sei como ele é. Quer dizer que a água fica dura, igual uma pedra?
– Isso mesmo. Gelo é água no estado sólido, quando a temperatura fica muito baixa. Também existe a água na forma de vapor. Acho que esse você já viu, saindo de uma panela sobre o fogo, sendo aquecida. Aquela espécie de “fumacinha” que sobe da superfície da água quente, é vapor, ou seja, água no estado gasoso.
– Quanta coisa para aprender. O mais interessante é que isso está bem diante do nariz da gente e não percebemos. Melhor, percebemos, mas não discernimos o que é na verdade.
– Com o tempo você iria observar esse fenômeno. Para ver gelo, teria que ir mais para o norte, na China e no Tibet, existem montanhas bem altas e lá no alto existe gelo eterno.
– Ali nunca o gelo vira água?
– Enquanto forem altas montanhas e o gelo ficar por lá, será gelo praticamente para sempre.
– Será que um dia eu vou poder ver uma montanha gelada?
– Você não viu na viagem, quando passamos sobre as montanhas, perto dos polos dos planetas? Aquela imensidão branca, era tudo gelo. Muito mais da metade da água que poderia ser usada para beber em um planeta, está na forma sólida.
– Isso significa que é preciso cuidar da água, para não passar sede depois.
– Bingo, amigo! Você está aprendendo depressa.
– E no planeta que foi destruido, também haviam poluido a água, o ar e o solo?
– Em parte sim. Mas estavam no caminho de conseguir viver sem produzir poluição, mas o desastre das bombas veio primeiro. Não sobrou ninguém para contar a história.
– E o que aconteceu com as pessoas que morreram? Foram extintas ou passaram para outras esferas?
– Os causadores da destruição eram em número bem pequeno, na verdade. A imensa maioria morreu sem saber nem direito porque. Demorou alguns anos até que os últimos morressem em consequência dos tóxicos produzidos pelas bombas. Muitos morreram na hora e muitos foram morrendo aos poucos.
– E vamos encontrar os esqueletos desses mortos quando chegarmos lá?
– Eu creio que não. A natureza já fez seu trabalho, cobrindo praticamente tudo com camadas e mais camadas de detritos. Árvores e pequenas plantas cresceram e morreram, deixando uma quantidade imensa de matéria orgânica decomposta, formando uma nova superfície. Talvez seja possível encontrar alguns esqueletos em lugares de difícil acesso, em cavernas ou desertos. Se fizerem escavações, poderão encontrar ossos dessa gente morta.
– Estou começando a ficar preocupado com a vida que teremos nesse planeta. Será uma aventura fantástica, mas também viveremos surpresas bem estranhas.
– A vida em, qualquer lugar, traz surpresas agradáveis e desagradáveis. Isso não vai ser diferente quando forem para lá. É importante levar bem claro na mente os problemas que podem ser evitados, quando começarem a desenvolver pesquisas, descobrirem coisas novas. É bem possível que encontrem algum resquício das máquinas e instalações de bombas que havia por lá. Nem tudo foi destruído. Deverão tomar cuidado para não tocar em nada que seja suspeito.
– Vai ser bem difícil evitar que alguém faça alguma bobagem. Não se pode estar em todas as partes ao mesmo tempo. Se essas coisas forem achadas por quem seja curioso demais ou temerário, poderá causar graves danos ao grupo.
– Encontraremos uma forma de evitar isso. Vou falar com os assistentes do soberano. Talvez eles possam destruir esses restos que ficaram para trás e assim não oferecer riscos ao grupo de repovoamento.
– Assim eu ficaria mais tranquilo. Outra coisa que me chamou a atenção, foi a voracidade com que devastavam as florestas naquele planeta, onde há os pássaros e navios com motores. Eles irão parar em algum momento, antes de derrubar as últimas árvores?
– Isso só o tempo irá dizer. Se eles fizerem isso, estarão condenando o planeta inteiro à morte. A temperatura vai se elevar tanto que será impossível viver em sua superfície. O gelo dos polos vai derreter e inuncdar grandes áreas habitadas. O calor forte, transformará a maior parte da superfície em deserto. Isso torna a vida impossível.
– E então, acontecerá o que com esse planeta?
– Para ser franco, Minck, nem eu sei. Ainda não tive oportunidade de ver um planeta totalmente desertificado, depois de ter sido habitado por seres vivos.
– Só de pensar sinto calafrios. Sei como é sentir o sol forte nos dias mais quentes. Posso imaginar como seria viver todos os dias com essa temperatura, ou mais alta ainda.
– As temperaturas se tornariam tão altas que queimariam a pele de todos os seres vivos. As plantas ficariam crestadas e morreriam em pouco tempo.
– Acho que as dúvidas mais sérias já foram esclarecidas.
– E o que você me conta da sua aldeia? Parece que ela está começando a ter um surto de desenvolvimento. Estou certo?
– Está sim. No último dia de descanso, houve uma reunião e mandaram emissários para colher informações nas cidades e terras vizinhas. Querem discutir leis e normas para aplicar na aldeia. Esperam que se transforme em cidade. O porto está ficando mais importante a cada dia e vai ser preciso organizar tudo. Do contrário estaremos caminhando na direção daquele planeta onde estão perto de se auto-destruir.
– Certamente isso demoraria muito tempo ainda a acontecer. Mas, a falta de normas e organização, leva a caminhos errados. Depois fica cada vez mais difícil de encontrar a forma de corrigir os problemas causados.
– Você pode nos ajudar na elaboração das leis?
– Não tenho permissão para interferir no livre arbítrio de vocês. Cada homem ou mulher que for participar do grupo de repovoamento, irá de sua livre e espontânea vontade. Ninguém será obrigado a ir, ou irá enganado para lá. Aqueles que se negarem a ir, porém, passarão por um processo de esquecimento e não lembrarão de nada depois. Não queremos causar problemas desnecessários. Será como se nada tivesse acontecido, apenas um bom número de pessoas terá partido, sem deixar lembranças a ninguém.
– Depois de ir para lá, ninguém poderá voltar, certo?
– Não há retorno. Uma vez aceita a transferência, a decisão é definitiva. Por isso tem que ser uma decisão livre e espontânea.
– Do contrário poderia haver quem quisesse voltar depois e se transformaria num problema sério.
– Exatamente. Isso não pode ser. A viagem é apenas de ida. Não existe volta. Mas creio que haverá novidades em número suficiente para que ninguém pense em voltar. Também passarão por uma espécie de esquecimento, para não ficarem com saudades da vida que tiveram aqui na Terra.
– Será como se tivéssemos surgido, já na idade adulta ou adolescente nesse planeta. Entendi.
– Se estiver pensando em desistir, ainda é tempo. Nem você será obrigado a ir. Vai esquecer o que aconteceu e voltará a vida normal de antes.
– Eu quero continuar. Não sou de desistir fácilmente. Ainda mais depois da viagem pelas estrelas. Se já estivéssemos prontos, eu iria agora mesmo.
– Falta muita coisa. O novo mestre de luta com as mãs é muito importante. O Soberano não quer que sejam levadas armas. A defesa que for necessária, deve ser feita com o uso das mãos e pés. Não podemos ter certeza de que um dia serão fabricadas armas, mas se pudermos evitar tal problema, será feito todo o possível para isso.
– No começo não vai ser difícil, mas depois de algumas gerações não se poderá ter certeza. Sempre haverá quem, usando esse tal de livre arbítrio, queira fazer sua vontade, dominar os outros. Nesse caso o surgimento de armas será difícil evitar.
– Veremos como isso irá acontecer.
– Acho que devo ir dormir. Mamãe deve estar apreensiva com minha demora. Nos vemos quando novamente?
– Daqui a duas semanas. Vou acompanhar o Soberano em uma viagem para o outro lado do Universo. Iremos demorar um pouco. Mas continue atendo a tudo de novo que surja. Cada novo acontecimento pode trazer contribuições importantes para o futuro.
Um aceno de mãos e Arki, como que evaporou-se de perto de Minck. Mal o amigo partira e já estava pensando em novas indagações a fazer no próximo encontro. Por sorte era uma noite enluarada e desceu com mais facilidade do penhasco. Ao chegar em casa, encontrou a mãe já dormindo. Demorara mais que o habitual e a coitada não aguentara esperar acordada. Fechou cuidadosamente a porta e foi para seu aposento. Deitou-se e ainda ficou algum tempo meditando sobre tudo que ouvira no penhasco. O mais interessante era a nitidez com que recordava cada palavra de Arki, dita desde o primeiro encontro. Parecia que tudo estava gravado em letras bem grandes num imenso pergaminho colocado à sua frente. Em meio a meditação, adormeceu e acordou somente com o sol iluminando pelas portas e janelas. Dormira além do normal.
A mãe guardara sua porção do desjejum e ele comeu em silêncio. Estava levemente envergonhado de sua falta. Era geralmente um dos primeiros a levantar e falhara dessa vez. Devia ter ido dormir muito tarde mesmo. A mãe lhe perguntou:
– Posso indagar onde esteve ontem a noite? Não vi voê voltar.
– Eu estava na casa do Mestre Zósteles e esquecemos do tempo.
– Vou perguntar ao mestre se isso é verdade. Você parece que está me enganando, meu filho.
Rubro de vergonha, baixou a cabeça e buscou uma desculpa mais forte, pois não poderia chegar ao mestre e pedir para mentir, em caso de sua mãe perguntar. Nesse momento o amigo estava diante da porta e se anunciou:
– Salve a todos dessa casa!
– Seja bem-vindo, Mestre. Estou terminando o desjejum.
O filósofo entrou e veio sentar-se perto de Minck. Uma piscadela que ele deu, aqueceu seu coração. Foi o momento em que Muhn chegou perto e perguntou:
– Meu filho anda lhe perturbando o descanso, fazendo-o ficar acordado até tarde da noite. Vou aplicar um castigo a esse menino travesso.
– Não faça isso, Senhora Muhn. Para mim é sempre um prazer palestrar com o Minck. Tanto é que estou aqui logo cedo.
Parecia que essa resposta satisfizera Muhn. Mesmo sem dizer diretamente, o Mestre confirmara suas palavras. Não houvera necessidade de solicitar a ele que dissesse uma mentira, o que seria imperdoável, sem dúvida.
Sentaram-se à sombra de uma árvore que existia no patio da casa, na parte dos fundos. Ali falaram longamente sobre a entrevista que Minck tivera com Arki na noite anterior. Zósteles elogiou a perspicácia do menino e anotou mentalmente as respostas que haviam sido dadas às dúvidas apresentadas. Ao saber que a ida para o planeta destruido, seria um processo de livre escolha dos participantes, o mestre ficou apreensivo no início. Imaginou como ficaria a situação das famílias que eventualmente se dividissem. Quando Minck lhe falou do “esquecimento”, ele começou a compreender. Ocorreria uma espécie de amnésia coletiva com todos aqueles que não tivessem aceitado participar e continuariam vivendo na aldeia normalmente. Isso era mais aceitável. Do contrário, haveria lamentações, despedidas e cenas complicadas de assistir.
Haveria mães e pais vendo os filhos partir para sempre, sem jamais poder se comunicar, irmãos se despedindo de outros que ficariam. Muito bem pensado o estratagema. O aparente esquecimento que os pioneiros sofreriam, apenas quanto a coisas que poderiam lhes suscitar saudades e vontade de regtornar, também era importante. Não teriam suas memórias apagadas, apenas elas se tornariam um pano de fundo em suas vidas. As novidades enfrentadas na nova pátria, seriam suficientes para não deixar a nostalgia se instalar.
Ficou horrorizado com a pespectiva de um planeta habitado, transformar-se em um imenso deserto, com a evaporação de toda água, devido ao aquecimento descontrolado da atmosfera, por causa da poluição que a industrialização poderia trazer. Lembrou daqueles homens em suas máquinas de destruição, devastando imansas áreas de florestas em pouco tempo. Estariam caminhando na direção que Minck apontara como possível? Havia sérios indícios nesse sentido. Apenas uma radical mudança de atitude, poderia fazer rettroceder o processo e salvar o planeta. Deveria ser angustiante ver a temperatura subir incontrolavelmente, levando toda vida a se extinguir gradativamente por toda parte. A morte por alta temperatura era sem dúvida um suplício inaudito. Passou um longo instante meditando sobre o assunto, enquanto Minck, por sua vez, também meditava, lembrando as imagens vistas e as palavras de Arki.
Zósteles, teve um lampejo mental e seu rosto se distendeu em um largo sorriso. Minck parou de falar e olhou para o Mestre com ar indagador. Ao ver que ele continuava a sorrir cada vez mais, indagou:
– Qual é o motivo desse seu sorriso tão franco, Mestre? Ou não devo perguntar?
– É que eu imaginei por um momento eu me transportando para minha terra natal. Começasse a narrar minhas longas aventuras. Os primeiros anos até não seriam tão difíceis de aceitar, mas as últimas semanas foram pródigas em vivências extraordinárias. Dessa vez me taxariam definitivamente de louco, fanático ou coisa assim. É esse o motivo do meu sorriso. Acho que é bom não ter esse poder de se transportar para onde a gente pudesse desejar. Seria bem complicado e causaria muitos problemas.
– O Arki pediu que eu ficasse atento a todos os fatos notáveis. Disse inclusive que Iagushi é muito importante. Como o planeta para onde vamos, foi destruido pelas armas, o Soberano pretende que não exista uso desse recurso no repovoamento. Se mais tarde acontecer a fabricação, não haverá como impedir, mas no começo deve ser tudo feito com as mãos, sem recorrer a nenhuma espécie de arma.
– Creio que isso será bem difícil. Será necessário ter instrumentos de corte para diversos fins e estes, também podem servir como armas. Bastará fazer o uso próprio e estará feita a diferença.
– Tenho fé que o nosso Soberano terá um plano pronto para isso. Ele não quer interferir no nosso livre arbítrio.
– Chego a pensar que o Todo Poderoso deve ter se arrependido de conceder às suas criaturas essa faculdade. Seria bem mais fácil, fazer todos caminhar no caminho reto e pronto, sem essa questão de escolher o caminho e cair, para depois levantar e cair novamente.
– O que ele quer, segundo as palavras do Arki, é experimentar por nosso intermédio a vida livre, tudo feito por escolha própria, sem imposição. Como Deus, o Criador, ele não pode viver pessoalmente essa experiência.
– Se estou entendendo, somos uma espécie de “brinquedo” com quem ele se diverte, assistindo nossos erros e acertos.
– Acho que não, Mestre. O Arki falou num dos encontros que ele é infinitamente misericordioso. Seu desejo mais forte é acolher a todas suas criaturas no abraço da eternidade. Porém isso deve acontecer pela livre escolha das criaturas dotadas de vontade.
– Um bocado complicado. Mas, já que estamos nessa canoa, vamos remar. Resta saber se será a favor ou contra a correnteza.
– O que é correnteza, Mestre?
– Esqueci que você sempre viveu aqui e nunca viu um rio grande. Imagine um canal, por onde um imenso volume de água corre na direção do mar. Há partes onde a água corre com maior velocidade, é isso que chamamos de correnteza. Uma canoa, é um pequeno barco e se move pela ação dos remos.
– Eu sei. No porto também há os botes que os marinheiros usam para ir de um navio a outro ou descer em terra, quando ancoram afastados do cais.
– Subir o rio, remando contra a correnteza é mais difícil. Já descer, a favor, fica bem mais fácil.
– Agora eu entendi.
– Você falou no Mestre Iagushi. Devemos contar a ele sobre nossas aventuras?
– Ainda não. Devemos aguardar o momento certo. Talvez possamos falar aos poucos, de modo que ele fique interessado e pergunte. Aí será o momento de abrir o jogo.
– Tenho certeza de que ele já está sabendo de alguma coisa. Ele tem a tal “fagulha” bem acesa. Percebe as coisas no ar, sem ser preciso falar muita coisa.
– Vamos aguçar a curiosidade dele e quando ele ficar no ponto, revelamos aos poucos. Ele vem de uma civilização bem diferente da nossa. Lembra a história dos samurais cometendo suicídio por ordem do Suserano? Que coisa mais triste.
– Na minha terra, existe a condenação que obriga algumas pessoas a beber veneno. É misturado no vinho ou outra bebida, mas o condenado sabe que irá beber e morrer. Isso é quase a mesma coisa.
– O que ouvi ele dizer é que o Samurai corta com a adaga o próprio ventre, deixando as vísceras para fora. Morre em agonia. Isso deve ser horroroso.
– A morte nunca é bonita, especialmente quando alguém é condenado a morrer. Seja por enforcamento, empalamento, decapitação, estrangulamento. Os seres humanos são bem criativos na arte de matar aqueles que condemam a morte.
– Entendi tudo, apenas não sei o que significa “empalamento”. Pode me explicar?
– Era hábito de alguns generais empalar os reis ou generais inimigos capturados em combate. Uma estaca pontuda é fincada firmemente no chão e o condenado é suspenso acima e depois o descem lentamente, fazendo a estaca penetrar por baixo até alcançar um ponto de ficar firme. É uma das mortes mais horríveis. Levam até mais de um dia para morrer em lenta agonia.
– Que bárbaro costume. Eu me pergunto se essas pessoas nunca pensam que um dia poderão sofrer o mesmo suplício?
– E isso aconteceu inúmeras vezes, meu amigo. Hoje o general foi vitorioso e demonstrou sua força empalando o inimigo. Amanhã é derrotado e o vencedor faz com ele o mesmo. É algo como experimentar do próprio veneno.
Nesse momento Sock que fora caminhar pela aldeia, voltou e veio sentar-se também à sombra da árvore. Havia ouvido as últimas palavras e perguntou:
_- O que leva vocês dois a falar de assuntos assim tétricos? Generais matando generais, empalamento. Umas coisas bem cruéis a me ver.
– Certamente, Senhor Sock. Eu estava contando ao Minck sobre os métodos de execução de condenados existentes pelo mundo afora. O empalamento é um costeume de alguns generais persas, babilônios, com o comandante e mesmo o rei inimido, depois da derrota do mesmo. Que são procedimentos cruéis, não resta dúvida.
– O Senhor deve ter visto coisas bem terríveis andando pelos quatro cantos do mundo.
– E como vi. No Egito por exemplo, assisti um crocodilo enorme, devorar um homem em duas ou tres mordidas. Praticamente o enguliu inteiro.
– A mando de quem?
– A mando do faraó, o rei do país.
– Deve se sentir imensamente poderoso para fazer tais coisas.
– É chamado de Deus, o Orus vivo. Mas morre do mesmo jeito que qualquer pessoa. O novo que sobe no trono, transforma-se automaticamente em Deus vivo. Não consegui entender isso.
– Realmente, como pode um ser humano transformar-se, assim de uma hora para outra, num Deus? Depois morre e a divindade passa para outro! Não há comocompreender isso.
– E olhe que é um dos reinos mais poderosos do mundo conhecido. O país fica às margens de um grande rio, o Nilo. Antes havia o Alto e o Baixo Egito, tendo cada um seu próprio rei. Com o tempo os dois foram unificados e o rei usa as “duas coroas”. Chamam-no de Rei das Duas Terras. Na coroa há duas serpentes de ouro entrelaçadas e com as fauces voltadas para frente, na direção dos súditos. Inspira grande temos no povo em geral. Tem poder de vida e morte sobre todos os súditos. Mesmo assim acontece de haver que se atreva a matar o rei.
– Se ele fosse realmente um deus, não deixaria que o matassem, não é verdade?
– Eu também penso assim. Porém, nas terras do Egito, ninguém pode se atrever a falar nada desse tipo. Seria denunciado e, quase com certeza, executado na boca de um crocodilo enorme. Ou então outro método que eles dispõe. São criativos na arte de executar condenados.
– Eu sempre vivi aqui nessa aldeia perdida na costa dessa terra. Nunca presenciei nada parecido.
– Nem queira, amigo Sock. Nem queira. Ver um ser humano perfeito, em pleno vigor físico, transformar-se em nacos de carne sangrenta em questão de segundos, é um espetáculo nada edificante.
Minck ficou ouvindo os dois adultos falarem. Enquanto ouvia, seus pensamentos voavam pelo espaço, em busca de coisas que vira em sua viagem pelas estrelas e que não prestara a devida atenção no momento. As palavras do Mestre, sobre o Egito, entravam em sua mente, onde acabaram se misturando com os pensamentos e num dado momento pensou na possibilidade de existirem tais feras no planeta para o qual iriam dentro de alguns anos! Como poderiam enfrentar tais seres? O uso exclusivo das mãos e pés seria o bastante? O mais provável era que deveriam usar as pernas, mas para se afastar o mais depressa possível das proximidades do local em que existissem esses animais. Poderia perguntar ao amigo celeste, mas não sabia se era conveniente. Daria um tempo para meditar sobre o assunto. Muitas coisas encontravam solução por si mesmas.
Nesse momento Xing veio chamar para a refeição do meio dia. O sol estava projetando a sombra da árvore praticamente na vertical, ao redor do tronco. Zósteles ameaçou se retirar, mas foi instado a participar da refeição. Muhn o havia visto e certamente tinha preparado comida em quantidade suficiente. Aceitou de bom grado. Assim poderia palestrar mais um pouco com os amigos. Levantaram-se todos e dirigiram os passo na direção da porta de entrada. Antes lavaram as mãos e molharam o rosto. Era conveniente sentar-se à mesa, com as mãos limpas e o rosto refrescado. Em instantes a sala de refeições se encheu. Os demais filhos chegaram, cada um de um lado. Pareciam ter adivinhado a hora da refeição, ou, como costumava dizer Muhn: Vinham pelo cheiro do alimento pronto.
Na mesa rústica havia uma metade de cordeiro assada, acompanhado de tubérculos cozidos, saladas e também uma forma de pão, feito com farinha de arroz e aveia. Depois de a refeição andar pelo meio, foi servido para acompanhamento, um odre de vinho, produzido nos arredores da aldeia. As condições financeiras da família agora permitiam alguns luxos, que em outros tempos, não existiam.
Depois da refeição, Zósteles convidou Minck para passearem na orla da baia. Além do porto onde os navios atracavam, havia uma extensa faixa de areia, não muito larga, mas bastante sombreada. Ali poderiam passear e falar à vontade, sem serem importunados. O menino aceitou prontamente. Esperaram um momento e depois seguiram pelas ruas até o início do passeio à beira da áuga. Era agradável, vez ou outra pisar na água, ou na areia molhada com os pés descalços. Levavam as sandálias nas mãos. O contato com a areia ajudava a relaxar o corpo, clarear a mente. Dessa forma gastaram a maior parte daquela tarde em animada conversação sobre vários assuntos, sendo o mais frequente e constante, sua viagem e os contatos com Arki. Havia muitas lacunas em seus conhecimentos que precisariam ser preenchidas ao longo dos dias.
A conversação foi tão animada que sequer perceberam a tarde se esvair e o sol escorregar para o poente. Nas proximidades dos rochedos que ladeavam o estreito de acesso ao porto, Zósteles teve a ideia de que se deveria colocar uma espécie de obelisco nos dois lados, indicando aos navegantes haver ali um porto seguro para ancorar. O comércio começava a florescer e assim a aldeia alcançaria seu progresso mais rapidamente. Minck achou a ideia ótima e se encarregou de fazê-la chegar ao pai, que a transmitiria a quem de direito. Como iriam tratar de modernizações na aldeia, essa medida poderia, sem dúvida, ser importante. Atrair mais navios para o ancoradouro era sinal de prosperidade. Significava mais mercadores vindo trazer e levar mercadorias. Em pouco tempo a pequena aldeia de pescadores, com um porto medíocre, transformar-se ia em um florescente centro de comércio marítimo e terrestre.
Viriam pessoas de todos os lados, trazendo novos conhecimentos, novos produtos e atividades. Dali levariam a impressão de uma cidade bem organizada, se assim conseguissem fazer os encarregados de legislar e por em prática as normas aprovadas. Novas línguas seriam ouvidas e gradativamente incorporadas aos costumes do povo. Haveria um gradual enriquecimento de todos e da aldeia em especial.
Quando chegaram às ruas em seu caminho de volta, um grupo de discípulos rodeou o Mestre. Todos o admiravam e queriam ter a oportunidade de dizer alguma coisa ao estrangeiro. Dele queriam ouvir algumas poucas palavras que fossem. Minck sentiu que era afortunado por desfrutar da amizade especial de Zósteles. Receou que os condiscípulos viessem a sentir inveja, ou ciumes de sua posição especial. Mas não ouviu nenhum comentário, nem olhar que indicasse algum tipo de ressentimento de parte deles. Ele era o assistente e lhes dispensava toda atenção possível nos momentos das lições e exercícios. Sentia que Arki, de alguma forma, estava agindo nos bastidores. A fagulha de Deus, presente nas mentes de todos eles, devia estar atuando na orientação de suas mentes no sentido de vê-lo como era realmente.
A pequena turba de discípulos acompanhou o Mestre e seu assistente até as proximidades de suas moradas. Ele os despediu, recomendando que tomassem cuidado no caminho de suas casas. Esperava a todos no dia seguinte nas lições para continuarem a aprendizagem que ia a plena força. Todos fizeram uma pequena mesura, em sinal de deferência para com o Mestre e depois sairam em disparada em direção de suas moradas. Minck e o Mestre também disseram adeus mutuamente, indo depois para sua residência.
Na semana que iniciava, logo pela manhã, tudo começou a andar para frente. Durante o desjejum Minck lembrou de dizer ao pai da sugestão dada por Zósteles, sobre a instalação de marcos indicativos nas proximidades do estreito de acesso ao porto. Era difícil, para quem não conhecesse o lugar, chegar ao porto. O pai pensou por um momento e perguntou:
– Vocês foram até o estreito ontem à tarde?
– Sim, pai. Passeamos lentamente e quando vimos estávamos lá perto do estreito. O Mestre o observou e disse que sem os obeliscos indicadores, os navios podem passar ao largo sem chegar, por não saber que ali havia um porto importante.
– Muito bom. Vou passar a sugestão ao Senhor Agik e ver se ele adota essa medida. Deve ser ótimo, se puder atrair alguns navios para cá, em lugar de passarem longe, vai trazer grandes benefícios a todos.
– Tenho certeza disso, pai. Nunca havia ido até tão perto, mas logo percebi que o Mestre tinha razão.
– A aldeia deve muito a esse estrangeiro que acabou batendo em nossas portas. Parecia um velho alquebrado e está se mostrando de valor inestimável.
– Ele é incrível. Eu nunca havia visto ninguém como ele.
Todos levantaram e sairam, deixando em casa Muhn e as filhas. Xing logo foi também, pois participava das lições matutinas. Sentia-se orguhosa do irmão Minck. Ele era de uma capacidade fora do comum. Em pouco mais de uma semana havia dominado todos os símbolos da língua, conseguira combina-los formando palavras e frases. Conseguia ler qualquer texto e ajudava o Mestre no ensino. Ainda aprendia em adição a língua materna do Mestre. Dessa forma, logo adiante, seria também um Mestre. Os deuses deveriam estar colocando a mão sobre o irmão, fazendo-o aprender em ritmo mais acelerado que os demais. Sentiam uma ponta de orgulho por ele.
A semana transcorreu rapidamente. Esperavam para qualquer momento o retorno dos emissários enviados em busca de dados para elaborar as leis. No porto o movimento foi excepcional. Vários navios de porte médio haviam aportado pela primeira vez. Um bom volume de mercadorias foi descarregado, além de levarem um volume ligeiramente mais elevado. Isso significava a necessidade de aumentar o volume de mercadorias compradas para manter em estoque. A continuar no ritmo atual, logo seriam obrigados a ampliar as intalações de estocagem de mercadorias. Já viam também a necessidade de aumentar a área de estacionamento das carroças em espera para descarregar e carregar mercadorias. O espaço disponível no momento, estava ficando superlotado em praticamente todos os dias. Chegavam a estacionar nas ruas, por falta de vagas no estacionamento. Isso criava problemas, pela presença de animais, nas proximidades. Outro problema eram os excrementos dos mesmos. Não existia uma forma de obrigar os donos a remover os dejetos, ficando as ruas sujas e malcheirosas.
Era com razão que os moradores e comerciantes da região reclamavam da situação. Isso era um sinal positivo, uma vez que diante da necessidade, era mais fácil convencer a todos no momento de adotar medidas e implantar os serviços de limpeza. Por todo lado se podia ouvir vozes reclamando da situação e apoiando as propostas de Agik, inclusive sugerindo maior celeridade em tudo. Diziam que essas medidas já estavam atrasadas, no que eram contrariados por alguns, pois as mudanças haviam começado a acontecer faz pouco tempo. Não era possível culpar ninguém, uma vez que não era possível prever tais transformações. Agik chamou alguns dos membros mais destacados do corpo legislativo e ouviu suas opiniões. Eram unânimes em afirmar que o povo estava pronto para aceitar mudanças e mesmo exigia que elas fossem feitas o quanto antes.
Agik sentiu-se satisfeito. Quanto antes os emissários voltassem, melhor seria. Enquanto isso fazia o possível para amenizar os problemas, permitindo que algumas carroças adentrassem a área do porto para a descarga e carga na primeira hora da manhã seguinte. Isso diminuia o número de veículos nas ruas, mas era insuficiente. Havia nas proximidades, fora do perímetro urbano, um terreno bem grande, bastante pedregoso que poderia ser transformado em estacionamento amplo o bastante. O único problema eram as pedras que deveriam ser removidas. Algumas eram imensas e só mesmo um gigante para dar jeito. Teriam que estudar uma forma de usar a área, deixando as pedras que fossem impossíveis de remover. Pensando nisso, quando entrou no porto um navio que trazia do exterior um sortimento grande de marretas e cunhas, necessárias para quebrar as pedras, permitindo que fossem deslocadas para um lugar onde não fossem incômodas.
Nesse contexto surgiu a ideia lançada por um dos legisladores. Poderiam usar as pedras, quebrando-as em partes pequenas o suficiente para servirem de matéria prima na pavimentação das ruas principais. Uniriam o útil, ao necessário. Isso permitiria dar solução a dois problemas. Houve, é lógico, quem concordasse e quem discordasse. Como poderiam quebrar aquela enormidade de pedras? Para realizar o calçamento das principais ruas, precisariam ser partidas em pedaços suficientemente pequenos para tornar-se utilizáveis nessa tarefa.
De posse de um conjunto de marretas e cunhas, bem como alavancas, Agik levou um pequeno grupo de trabalhadores ao local das pedras e lhes ordenou que usassem das ferramentas para partir as pedras. Em poucos minutos um bom número de pedras havia sido partido e transformado em peças capazes de servirem para pavimentação. Isso provava que a ideia era viável. Bastava haver quem se dispusesse a trabalhar e, sem dúvida, existir recurso para pagar pelo serviço. Logo apareceu a proposição de chamar cada homem da aldeia a trabalhar algumas horas por semana no serviço de quebra das pedras. Outros poderiam trabalhar no assentamento das pedras nas ruas previamente escolhidas. Era necessário convocar uma reunião para isso.
No próximo dia de descanso essa reunião teve lugar. Foi escolhido para isso o próprio local das pedras, onde foi feita nova demonstração da possibilidade de quebrar facilmente as inúmeras pedras ali existentes. Depois foi apresentada a sugestão de que cada cidadão desse algumas horas de trabalho por semana para executar o serviço. Quem não dispusesse de tempo ou estivesse debilitado fisicamente, poderia pagar para alguém fazer as horas em seu lugar. A maioria concordou em trabalhar. Alguns reticentes, aderiram a cotnragosto, mas no fim se juntaram à maioria. Não iriam remar contra a maré. As crianças também estavam presentes em bom número na reunião e acharam interessante essa forma de ação. Haveria economia de custos enquanto o trabalho era executado. O benefício era da aldeia toda.
Décio Adams
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