Fantástico mundo novo!
Décio Adams
-
O menino e a estrela!
Um menino, filho caçula de uma família numerosa, vivia ao sul da Ásia, em um tempo perdido nas brumas da história. Era um pouco franzino para seus 10 anos, se comparado aos irmãos, um pouco mais velhos e bem robustos. Isso lhe valia ser tratado por eles com algum desdém. Por isso sentia-se muito triste. Sempre que podia se esgueirava para o alto de um grande penhasco, localizada perto de sua casa. Dali observava o horizonte distante, o mar visível se encurvando lá longe, encostando no céu azul. Gostava de assistir à revoada das gaivotas e os navios que apontavam lá bem distante. Iam crescendo, crescendo e ficavam imensos aos olhos ávidos do menino, até atracarem no porto próximo. Quando ali estava à noite, olhava demoradamente as estrelas, mais insistentemente aquelas que podia ver sem levantar a cabeça. Isso lhe dava dor no pescoço e uma vez quase perdera o equilíbrio. Se caísse ali de cima, poderia se machucar seriamente. Se já era menosprezado pelos irmãos assim, imagine se ele sofresse a queda, com algum osso quebrado! Seria o fim. Não queria dar desgosto à mãe, nem ao pai, que sempre o tratavam com carinho e recriminavam os irmãos, quando estes o maltratavam.
Uma noite, sentado no seu lugar predileto, no alto do penhasco, olhou novamente para uma estrela que parecia ter aparecido acima do horizonte e podia vê-la apenas elevando o olhar de levemente para cima. Nessa noite, sentiu o corpo estremecer. Ao ver aquela, estrela que antes não estivera ali, ela piscou uma vez. Não acreditando em seus olhos, esfregou-os e tornou a olhar. A estrela tornou a piscar. Dessa vez pareceu nitidamente que piscara com o outro canto do “olho” (Será que estrela tem olho, pensou consigo). Ficou ainda mais perplexo e nesse momento a estrela piscou três vezes seguidas. Logo depois executou uma espécie de dança, saltando de um lugar para o outro, ora desenhando quadrados, retângulos, losangos, num movimento alucinado. Novamente ele esfregou os olhos para enxergar melhor. Quando os reabriu, acompanhou como que um feixe de luz azul, mas um azul como ele nunca havia visto, que emergia da estrela e percorria o espaço. Parecia vir em sua direção. Em seu coração interpretou aquilo como um modo de os céus se compadecerem de sua solidão, seu desespero por ser valorizado. Em pensamento falou:
– Obrigado estrelinha. Você aceita ser minha amiga? Sei que isso é meio bobo, mas como não tenho amigos, posso ter uma amiga estrela.
– Sim, eu aceito, – foi a resposta que ouviu nitidamente soar em seu cérebro.
Estava perplexo ao máximo, pensando estar tendo visões. Estava ficando maluco, como aquela pobre velha que vivia na aldeia e servia de chacota para os meninos da redondeza? Mas era tão real, tão viva a voz que ouvira, que tinha impressão de ouvir a estrelinha batendo palmas. Nisso a voz soou novamente em seu cérebro, dizendo:
– Feche os olhos por alguns instantes. – Ele obedeceu e esperou. Logo ouviu novamente. – Agora olhe aqui, à sua direita.
Ao abrir os olhos, deparou-se com uma figura humana, ligeiramente maior que ele, vestida de uma túnica brilhante, produzindo uma espécie de aura iridescente ao redor de todo seu corpo. A figura lhe abriu um largo sorriso. Um sorriso tão bonito, como ele jamais vira alguém sorrir. Toda atmosfera nas proximidades ficou azulada, como que irradiando amor, paz, alegria. Ficou sem palavras. A boca aberta, querendo falar, mas nada saia. Ficou tentado a sair correndo, mas lembrou que estava no alto do penhasco e poderia cair. Nisso a voz sou novamente:
– Eu sou de verdade; eu existo. Não sou uma visão criada por sua mente.
– Quuu…em é você? De onde você veio?
– Eu moro naquela estrela que você tanto observa nas últimas semanas.
– Mas veio assim, num instante até aqui? Ou está viajando há muito tempo?
– Eu vim no meu tele transportador instantâneo. Eu apenas penso e ele me leva onde eu quero ir.
– Fácil assim? Só pensar e já está lá?
– Se vou para muito mais longe, demora um pouco mais.
– Bem que eu queria ter uma coisa assim. Iria visitar as outras estrelas, a lua, a estrela da manhã, e tantas outras. Ah! Então foi você que viajou naquele raio azul que saiu da estrela?
– Foi sim. Por onde eu passo, deixo um rasto de luz azul do amor, misericórdia, paz.
– Essa luz me fez sentir uma alegria como nunca senti. Você me levaria dar uma volta no teu transportador? Uma voltinha pequena, não longe daqui.
– Esse é individual. Não cabem duas pessoas. Numa outra oportunidade eu venho com um que tenha lugar e levo você dar um passeio.
– Eu vou adorar ter um amigo assim. Mas ainda não sei seu nome e minha mãe sempre diz que não devo sair por aí com estranhos.
– Eu no espaço universal sou conhecido pelo meu número, mas pode me chamar pelo apelido, que é mais fácil lembrar: Arki. Pode me chamar de Arki.
– Prazer em conhecer você, Arki. Eu sou Minck, filho de Sock e Muhn.
Minck estendeu a mão e Arki a apertou efusivamente. No mesmo momento, uma alegria, uma sensação de bem-estar indizível se apossou do corpo do menino. A mesma aura de luz se estendeu ao redor do seu corpo.
– E o que você faz lá na estrelinha, onde você mora?
– Eu fico à disposição do administrador dessa e de outras estrelas próximas. O nome dele é Melki.
– Sempre me disseram que não havia gente nas estrelas. Que somos os únicos seres vivos e inteligentes no universo todo. Pelo que você falou, existe gente em outros lugares.
– Se existe! E como existe. Há em todo Universo e seus Super Universos, muitos milhões de mundos habitados. E tem outros sendo criados o tempo todo. O Universo ainda vai crescer muito, durante muito tempo.
– Poxa! Você sabe uma porção de coisas e eu sou bem ignorante.
– Minck, eu vou te ensinar muitas coisas. É só você ter paciência e não ser apressado. Você faz parte de uma espécie evolucionária, criada neste planeta. Seu destino é o paraíso, depois de percorrer uma porção de etapas.
– E quanto tempo demora até chegar a esse paraíso? É para lá que a gente vai quando morre?
– Já disse para não ser apressado. Você e muitos outros, tem a eternidade inteira pela frente para evoluir até chegar ao paraíso.
– Isso parece um bocado de tempo. Quantos anos tem a eternidade?
– Meu pequeno amiguinho! Na eternidade não existe o tempo. Mas isso agora não é para você se preocupar. Ainda não é hora de entender essas coisas.
– Eu sei que sou meio burrinho. Meus irmãos sempre dizem que sou igual uma toupeira.
-Não foi isso que falei. Apenas que você ainda não chegou onde vai chegar um dia e poderá compreender essas coisas. É só ter paciência e percorrer uma etapa de cada vez.
– O que você quer dizer é que existem pessoas assim como eu e meus irmãos, meu pai e minha mãe, os moradores da aldeia, morando em outros lugares no universo!
– Exatamente. Existem pessoas no mesmo estágio que vocês, mais avançadas, outras começando a caminhada. O imenso Universo está repleto de vida. Em todos esses lugares há planta, animais, flores, frutos, mares, peixes e outros tipos de seres. Alguns são parecidos com os daqui outros diferentes. Depende da vontade do Soberano de cada universo local.
– Quem é esse Soberano de que você fala? É como aqui na terra, que tem os reis ou imperadores, usam coroas e sentam em tronos de ouro, muito luxo por toda parte?
– Ele é sim um rei, mas não tem essas coisas como importantes. O que ele quer é ver seu universo funcionando e dando certo. Dedica todos os momentos ao cuidado de suas criaturas.
– Entendi. Nós todos somos criaturas dele. E os animais também foi ele quem criou?
– Tudo que existe foi criado por ele. Ele é o que você pode chamar de Deus. Só que ele não é um deus raivoso, cruel, ciumento, vingativo.
– Engraçado. Sempre ouvi dizer que os deuses ficam nos céus, sentados nos seus tronos, esperando que os humanos façam coisas de que não gostam, para mandar castigos. As tempestades, raios, vendavais, tudo isso vem dos deuses.
– Essa ideia de Deus é errada. Deus é todo amor, misericórdia, bondade. Ele gosta de colocar seus “filhos” no colo e acaricia-los. O maior problema é que os homens quase sempre se recusam a aceitar o carinho de Deus.
– Mas acho que ele nunca me pegou no colo, nem me fez carinho. Ou isso foi feito pelas mãos de minha mãe, ou meu pai? Também tem meu avô que me queria muito bem. Mas algum tempo atrás ele ficou doente e morreu. Eu chorei muito.
– Essas foram demonstrações de carinho de Deus. Mas se você pensar em Deus, tentar entender o que ele te diz, vai conseguir sentir o carinho dele por você.
– Bem complicado para entender tudo isso. Por quê esse Soberano não vem ele mesmo falar com a gente?
– Ele é muito ocupado. Tem muita gente e outros mundos para tomar conta. Por isso ele não pode fazer essas coisas pessoalmente. Somos nós, seus mensageiros que levamos as mensagens em seu lugar.
– Quer dizer que ele trabalha muito. Sei como é. Meu pai trabalha o dia inteiro e quando chega em casa está tão cansado que não quer nada, além de se lavar, comer e depois dormir. Tenho pena dele quando vejo o rosto triste e cansado.
– O seu Soberano, ou seja, seu Deus, trabalha de modo diferente, mas é mais ou menos isso. Você está começando a entender alguma coisa. Quanto a entender, não se preocupe. Nem mesmo nós, mensageiros que temos contato frequente com o Soberano e com o Pai Dele, não compreendemos a maior parte das coisas.
– Então existe um Soberano, acima dele? Ele tem um Pai mais poderoso ainda?
– Bingo, Minck! Você acertou na mosca. É o Supremo Último, que mora na Ilha do Paraíso, bem no centro de todos os Universos que foram criados e ainda vão ser criados.
– Não entendi direito quando você falou “nós”. Quer dizer que existem outros Arkis ou coisas parecidas viajando por aí?
– Você não saberia contar uma mínima parte de todos nós. Em geral somos conhecidos como anjos. Mas existem muitos tipos ou categorias de anjos. Cada uma delas tem uma função, com suas tarefas a cumprir.
– E o que eu faço para conhecer e compreender tudo isso? Acho que vou demorar um bocado no ritmo que ando. Eu demoro a compreender as coisas.
– Não demora não. Você que é apressado. Já te disse, tenha paciência. E olhe, preste bem atenção em uma coisa. Aí dentro de sua cabeça, bem lá dentro, tem uma fagulha do Supremo Último, o Pai do Soberano desse Universo. Ele serve para guiar seus pensamentos, indicar o caminho, levar você no rumo certo.
– Acho que não entendi. Nunca senti nada na minha cabeça. Se alguma coisa estivesse lá dentro, eu ia sentir dor ou sei lá o que.
– Essa “fagulha” não produz sensações físicas. Ela está ligada ao seu espírito. Comece a prestar atenção. Quando estiver em dificuldade, sem saber o que fazer, pense no Pai que está no Paraíso. Nesse momento a “fagulha” começa a funcionar e vai te indicar o caminho.
– Tenho que aprender a fazer isso. Quer dizer que eu posso pedir a esse pai que me ajude nas dificuldades?
– Mais ou menos assim. Não se deve pedir coisas para Deus. Ele sabe o que seus filhos precisam de material. Mas você pode aprender a conversar com ele, assim como estamos conversando agora. Sabia que, por meio da “fagulha” ele sabe tudo que nós falamos aqui?
– Entendi. É assim que ele sabe o que os homens fazem. Ele escuta de dentro do cérebro deles. Que coisa legal. Assim nada ou ninguém escapa Dele.
– Mas ele não faz isso com a intenção de punir os homens. O objetivo é saber de suas necessidades, seus desejos para poder atender o que é bom para eles. O que não serve, ele não atende.
– Quer dizer que se eu pedir alguma coisa que não seja boa, ele não atende meu pedido? Sempre ouvi dizer que as pessoas rogam pragas e Deus manda o castigo para quem recebeu a praga. Então isso não é verdade?
– Essa é uma mentira muito grande. Deus não atende pedidos que causem o mal a algum de seus filhos. Mesmo sem saber, você conversou com ele, o Soberano. Foi por isso que você foi escolhido para uma missão.
– Missão! Eu! E onde vou desempenhar minha missão?
– Sem pressa. Relaxa amigo. Comece por prestar atenção às orientações da “fagulha”. Elas vão servir para te conduzir à compreensão no final. Não deve contar nada a ninguém, por ora. Se você contar que conversou comigo, seus irmãos principalmente, vão fazer troça de você. Chamar você de louco, pirado, desequilibrado, demente. Melhor ficar bem quieto. Apenas obedeça aos pais, ajude os irmãos e assim vai conseguir que eles mudem de comportamento em relação a você.
– E o meu passeio no céu, quando é que vou poder dar?
– Depois de mais algumas conversas, vou conseguir autorização para trazer um transportador e levar você na sua volta pelo céu. Vai ficar maravilhado.
– Promessa é dívida. Eu vou cobrar, sabia?
– Não vai precisar cobrar. Sempre cumpro minhas promessas. Do contrário não poderia mais ser mensageiro do Soberano.
– Eu acredito em você, Arki. É só uma pena que não vou poder contar para ninguém. Nem mesmo para minha mãe?
– As mulheres habitualmente não tem segredos com os maridos e ela pode contar ao seu pai. Ele vai acabar contando aos seus irmãos e deixou de ser segredo. Você vai sofrer com isso. Na hora certa você poderá contar. Quando isso acontecer, você já vai saber por si mesmo que é hora. Por enquanto, seja um pouco “egoísta” e fique com essa alegria só para você. No momento oportuno você compartilha com todos eles.
– Acho que minha mãe já está preocupada. Preciso voltar para casa. Quando você volta, Arki? Eu pisco para você antes de vir, pode ser assim?
– Está certo. Assim ninguém vai saber de nada. Ninguém acredita em estrelas que piscam para a gente.
– Por isso mesmo eu vou usar esse estratagema e nosso segredo fica bem guardado. Durma bem e pense bastante no Deus Soberano, no Pai, Supremo Último. Adeus amiguinho.
– Adeus, Arki. Espero você todos os dias.
Em um piscar de olhos, o feixe de luz azul, como que encolheu e sumiu na estrelinha. Minck sentiu-se sozinho, mas seu pequeno coração estava palpitando. Lentamente desceu do penhasco e caminhou até sua casa. Tinha vontade de assobiar, cantarolar, mas isso chamaria atenção dos vizinhos e também da família. Não queria saber de suspeitas sobre seu segredo. A mãe Muhn estava à espera. Deu-lhe um beijo e ele se recolheu ao seu local de dormir. Passou longo tempo deitado no escuro, pensando sobre o que vivera no alto do penhasco. Em alguns momentos chegou a duvidar da veracidade do ocorrido. Mas logo as sensações de paz, alegria, até mesmo euforia, voltavam tão intensamente parecendo estar tudo acontecendo naquele mesmo momento. Dormiu, mas seu sono foi recheado de sonhos. Via a si sentado ao lado de Arki, viajando pelo espaço em velocidades alucinantes, vendo as indescritíveis maravilhas da imensidão infinita do espaço interplanetário, interestelar. Arki lhe apontava o que eram cada conjunto de estrelas, seus planetas e satélites. Acordou sentindo como se estivesse retornando da viagem, mas percebeu que estivera apenas sonhando, deitado em sua cama.
Enquanto isso, no outro cômodo Muhn também custara a conciliar o sono. Sock dormia seu sono pesado de trabalhador cansado, recuperando as energias para novo dia de labuta. Ela, sempre atenta ao caçula, tentando adivinhar suas menores mudanças de humor, seu olhar, geralmente triste, era para ela um livro aberto. Via de regra estava levemente acabrunhado, sendo raros os momentos em que demonstrava algum brilho de alegria nos olhos grandes, sempre perscrutando o mundo, como se buscasse alguma coisa diferente, sem conseguir resultado. Nessa noite, ao entrar em casa, coisa habitual há muito tempo, vira seus olhos brilhando de um modo diferente. Era como se estivesse levando sobre a cabeça um grande cartaz, anunciando algum acontecimento fantástico, mas escrito em letras ilegíveis. Até a pele parecia emitir uma vibração nova, diferente. Era certo que alguma coisa especial acontecera com seu pequenino Minck, mas não sabia dizer o que era. Pensou em ir lhe perguntar, mas isso seria invadir sua vida. Sempre gostara, quando criança, de ter seus pequenos segredos e os defendia com unhas e dentes. Não seria ela a transgredir a norma que gostaria que os adultos tivessem seguido quando era criança. Um dia, se assim fosse a vontade do filho, ela seria informada sobre tudo que estava acontecendo com o filho nesse momento. Daria a ele o tempo que fosse preciso. No entanto levou longo tempo para adormecer, pensando em seu menino, tão frágil e, no entanto, às vezes, parecia tão forte como qualquer um dos irmãos mais velhos. Sua têmpera parecia ser mais resistente, flexível, mas capaz de suportar grandes esforços espirituais. Pedia aos deuses que iluminassem a vida de toda sua família.
Na manhã seguinte, na hora costumeira, todos levantaram e se apresentaram junto ao fogo, onde a mãe preparava alguma coisa para quebrar o jejum das longas horas de sono. Um recipiente com água, colocado junto à porta, servia para cada um pegar uma porção e se lavar, espantando os últimos resquícios de sono. Logo estavam todos comendo sua porção de alimento, controlado pela mãe, para que ninguém ficasse sem seu quinhão. Minck procurou manter a naturalidade, evitando que alguém percebesse algo diferente em seu rosto. Por dentro, no entanto, estava em turbilhão. Se esforçava ao máximo para prestar atenção ao que o amigo do espaço Arki denominava “fagulha” do Pai do Universo. Um ser que vivia numa ilha no centro de todos os Universos sem fim, era o criador de tudo, a fonte de toda energia, luz, calor, cor, chuva e ventos. Queria perceber se seus irmãos e também os pais eram portadores dessa “fagulha”. A princípio era difícil sintonizar na frequência do que os irmãos pensavam e desejavam. Não queria saber seus pensamentos, mas poder prever alguma coisa para estar preparado e tomar a atitude correta no momento oportuno.
Não tardou e percebeu que o pai, trabalhador do porto, onde ajudava na carga e descarga dos barcos e mesmo navios que vinham pelo imenso mar. Era para ele importante saber o momento certo de estar disponível para o trabalho, quando os grandes navios encostavam. Se pudesse saber antes que um deles estava chegando, poderia não aceitar algum serviço de menor monta e estar disponível para o serviço do grande barco, mais longo e rentável. Imediatamente Minck percebeu que sua “fagulha” estava sintonizando seus pensamentos com os do pai. Imediatamente formou um plano de ação. Bastava ficar no alto do penhasco, espreitando o horizonte. Ao avistar a aproximação de um grande navio, tinha apenas o trabalho de corre até o pai e dar-lhe o recado. Assim estaria contribuindo com o sustento da família, usando sua agilidade e esperteza.
Terminado o desjejum, Sock despachou os outros filhos em várias direções, em busca de trabalho, pois havia diversos pontos de atracação dos navios. Minck aproveitou e saiu sem dar na vista, indo para o alto do penhasco. No começo o sol, ainda baixo no horizonte, dificultava a visão. Mas em pouco tempo, o astro rei se elevou no céu e ele pode divisar lá, ainda bem distante, um enorme barco se aproximando. Esperou alguns instantes para confirmar se ele vinha na direção do porto. Logo não havia mais dúvida. O destino do navio era o porto. Desceu cuidadosamente do penhasco e foi para casa. Ali encontrou o pai conversando com a esposa Muhn. Estava difícil arrumar trabalho e ganhar o suficiente para sustentar dignamente a família, mesmo com a ajuda dos filhos maiores. Se ao menos Minck estivesse em condições de ajudar, seria um reforço, mas era tão franzino. Nisso, se deparou com o caçula, entrando pela porta. Tentou disfarçar, temendo que o filho tivesse ouvido suas palavras. Ficou quieto por um momento e logo o menino falou:
– Eu vi um grande navio que está vindo para o porto. Se o pai for logo, vai poder pegar serviço para mais de um dia, creio eu.
– Como foi que você viu, meu filho?
– Eu estava passeando na praia, – falou Minck, tentando não delatar seu ponto de observação privilegiado.
– Faça uma coisa, Minck. Corra até seus irmãos e avise-os para virem depressa no porto. Vamos ter uns dois ou três dias de trabalho cheio e bem pago. Muito bem filho.
Nesse momento Minck já se encontrava correndo a toda velocidade pela aldeia, em busca dos irmãos, que sabia onde encontrar. Dois encontrou no meio do caminho, voltando, pois não haviam encontrado nada a fazer em seus destinos. Avisou-os e seguir em frente, sendo que ia encontrando os demais, todos voltando desanimados. Apenas um havia encontrado algo para fazer, mas era pouca coisa e não daria serviço para todos, nem por um meio dia. Ao ver Minck, saiu de lado e perguntou:
– O que você veio fazer aqui, menino?
– Papai Sock está chamando todos para o porto principal. Um grande navio está chegando e certamente haverá trabalho bastante por mais de um dia para todos.
Imediatamente o irmão deixou o lugar, seguido do mais novo. Iam a passos largos, para chegarem logo, sem perda de tempo. Ao se aproximarem do porto, os outros já estavam reunidos, observando o grande navio que se aproximava. Minck ficou um pouco de lado, mas Sock o chamou e colocando a mão sobre sua cabeça de modo carinhoso, falou aos demais filhos
– Foi o pequeno Minck que viu o navio primeiro e me avisou. Graças a ele, vamos ter, com ajuda dos deuses, trabalho para vários dias e ganhar um bom dinheiro. Vamos poder deixar nossa casa abastecida por uma temporada. Por isso, de hoje em diante, o irmão de vocês não deve mais ser tratado como um estorvo, mas sim como um membro útil da família.
Abaixou-se, abraçou o filho e lhe deu um beijo na face. O menino ficou radiante. O pai nunca o maltratara, mas era a primeira vez que o tratava com deferência especial diante dos irmãos. Os outros todos vieram e o abraçaram, fazendo-lhe carinho. Estavam vendo que ele poderia ser muito útil, mesmo não dispondo de força para o trabalho braçal no porto. Seria o olheiro que informaria à força de trabalho da família, sobre as melhores oportunidades. Alguns minutos depois o grande navio parou perto e lançou âncora. Foi puxado por cordas até encostar no trapiche do porto e ali foi amarrado. O ancoradouro ficava protegido das grandes ondas, por um braço de terra que formava uma pequena baia. Assim ali as águas eram calmas e pouco balançavam os navios. Dessa forma a construção do porto ficava facilitada. Toda família ajudou na amarração do navio, deixando imediatamente claro que estavam disponíveis para trabalhar. O Capitão do navio os chamou, depois do serviço inicial, e lhes propôs comandarem a carga/descarga de um grande sortimento de mercadorias que vinham de longe, além de colocar a bordo um grande volume de especiarias, temperos e outros produtos que seriam levados para outros destinos. A família inteira ficaria empregada por quase uma semana, em posições de chefia, o que lhes daria um ganho extraordinário. Nesse meio tempo, Minck vistoriou as instalações do porto, que nunca observara em detalhe.
Conheceu a localização dos depósitos de alimentos, cereais, frutas, minerais, pedras e diversos outros produtos. Visitou, mesmo sem chegar muito perto, o setor administrativo e alguns engenhos empregados no carregamento de objetos mais pesados, impossíveis de serem movidos manualmente. Quando se extasiava com a enormidade dos guindastes e carros que ali havia, ouviu a voz do pai que lhe chamava:
– Minck! Venha cá, depressa.
Ao ouvir a voz do pai chamando, correu sem demora para junto dele e disse,
– Estou aqui, pai! Pode mandar que eu faço o que o senhor precisar.
Sock o olhou e caminhou ao seu encontro, dizendo sem demora:
– Vou pôr em sua mão uma porção de dinheiro que o Capitão adiantou pelo serviço. Leve para sua mãe Muhn e diga que é para comprar mantimentos para casa. Acompanhe-a e às tuas irmãs para ajudar no transporte das compras. Entendido?
– Sim, senhor. Eu entendi. Vou correndo e levo esse dinheiro para a mãe. Depois ajudo a fazer e carregar as compras. Pode contar comigo.
– Vai com cuidado e não perca esse dinheiro.
– Vou cumprir sua ordem, papai. Até mais tarde.
Saiu em disparada, levando sob o manto uma pequena bolsa, com uma porção de moedas, cuidando para que elas não fizessem ruído, denunciando o que levava. Mentalmente lembrou da “fagulha” e lhe agradeceu. O grande Pai do Universo, estava lhe mostrando o caminho e ainda o ajudava a participar da manutenção da família. Seguiu por atalhos que conhecia bem, evitando os pontos em que pudesse ser abordado por meninos mais velhos. Ao vê-lo caminhar apressado, poderiam suspeitar de sua pressa e querer saber o que fazia a ele andar com tanta velocidade. Isso poria em risco um pequeno tesouro, para a conquista do qual ele contribuíra. Novamente lembrou da presença de Deus na sua mente. Lembrou das palavras de Arki, dizendo que o Pai conhecia as necessidades dos seus filhos. Se pedisse com inteligência, nada lhes faltaria.
Dessa maneira em pouco tempo entrou em casa, provocando um pequeno alvoroço entre as mulheres, que estavam ocupadas com a limpeza e sua mãe dando voltas à sua cabeça buscando uma forma de conseguir ingredientes para o almoço e jantar da família. Nas últimas semanas o serviço no porto andara escasso e, mesmo não chegando a passar fome, haviam sentido o aperto da dificuldade bem de perto. Ao ver Minck, Muhn perguntou:
– O que foi meu filho? Aconteceu alguma coisa? Fale logo.
As irmãs Song e Xing se aproximaram para ouvir. Ele colocou a mão sob a roupa, pegou a pequena bolsa de tecido e entregou à mãe, dizendo:
– Papai arranjou serviço no porto para quase uma semana. O Capitão do navio deu um adiantamento e ele mandou esse dinheiro para comprar mantimentos. Eu devo ir com vocês para ajudar a trazer tudo.
Muhn abriu a bolsa, com as mãos trêmulas, despejou o conteúdo na outra mão e várias moedas caíram tilintando no chão. Eram de ouro e prata, além de algumas de cobre. Uma pequena fortuna. Nunca um dos quatro presentes havia visto tanto dinheiro junto nas mãos de um membro da família. Muhn olhou para o filho com lágrimas nos olhos. Suas preces haviam sido ouvidas pelos deuses:
– Você meu filho, tem mérito nesse dinheiro. Os deuses ouviram minhas preces. Mandaram trabalho para seu pai e irmãos. Em seu íntimo Minck pensou que quem ouvira as preces da mãe, guiadas pela “fagulha”, era o Pai do Universo. Fora ele o provedor daquelas moedas para dar sustento à família inteira. Sem demora, pegaram sacolas trançadas de fibras de bambu, outras de folhas de um capim apropriado para essas finalidades. Caminharam, um pouco apressados até o mercado. Ali fizeram as compras, sendo sempre a mãe Muhn a regatear, pedir preço melhor. Aos poucos as sacolas foram se enchendo de mantimentos diversos. Minck nunca vira tamanho sortimento ser levado para casa de uma única vez. Quando já não tinham mais sacolas e nem forças para carregar algo além do que tinham comprado, encerraram a excursão ao mercado, rumando para casa. Ali se dispuseram a guardar em local seguro tudo que haviam comprado, deixando o que seria preparado para o almoço e depois jantar daquele dia. Até bolo de arroz Muhn iria fazer, usando o forno que há tempo não via fogo. Seria um dia de gala, mas sem deixar perceber na vizinhança o que acontecia.
Por sorte, as vizinhas não haviam visto quando saíram, nem notaram a volta. Assim tudo ficou em segredo. Minck sugeriu à mãe que enviasse um pouco dos mantimentos para os tios que moravam um pouco adiante. Eles certamente também estavam necessitados e não gostaria de ser egoísta nesse ponto. A mãe concordou, pois tratava-se de sua irmã mais nova. Tinha três filhos, ainda crianças, e o marido trabalhava como pescador. Não tivera sorte no mar nos últimos dias. Era a época do ano em que havia escassez de peixes e sempre passavam alguma necessidade nessa época. Principalmente se não tivessem economizado alguma coisa nos meses de abundância de pescado. Muhn separou uma porção de mantimentos, colocou tudo em uma sacola e encarregou Minck e Song de levar tudo à irmã.
Lá chegando, foram recebidos com alegria, pois o que traziam seria o único alimento existente na casa naquele dia. Minck novamente lembrou da “fagulha” e agradeceu ao Pai do Universo pela ajuda. Sentiu-se confortado em saber que estava minimizando o sofrimento dos tios e primos. Aproveitou e falou ao tio sobre o trabalho no porto. Poderia trabalhar ali, enquanto o barco em que trabalhava para pescar, era consertado. Sofrera uma avaria séria na última vez em que haviam saído a pescar. Por um triz não haviam naufragado. O tio Sumiang pensou um pouco e depois saiu na direção do porto. Para ganhar dinheiro que permitisse comprar alimentos para os filhos, faria qualquer coisa. Estava mesmo à toa, enquanto o barco era consertado. Além disso, no mar os peixes pareciam ter sumido. O cunhado Sock o viu chegando e logo entendeu o motivo de sua vinda. Sem demora o apresentou ao capitão e ele foi contratado também. Assim a família se ajudava de todas as formas.
Minck voltou para casa radiante. Parecia adivinhar os pensamentos das irmãs, da mãe e atendia seus desejos mesmo antes de elas os externarem. Tal presteza e tanta atenção, se fez notar por parte das mulheres da casa. Muhn logo percebeu que ali estava uma parte da explicação que buscara na noite anterior. Mesmo não sabendo a origem de tudo, ela começou a olhar o filho com olhos mais amorosos ainda. Até mesmo admirados, pois ele estava tendo atitudes geralmente encontráveis apenas em pessoas adultas e mesmo assim, em raras ocasiões. Guardou isso em seu coração, ficando observando as reações das filhas às atitudes do irmão. Quando o almoço ficou pronto, os alimentos para os cinco membros da família que trabalhavam no porto, foram acondicionados em vasilhas, que foram postas em sacolas e Minck, junto com Xing saíram levando as sacolas. Minck ia alegre, cantarolando e a irmã o observava enlevada. Estava habituada a ver o irmão mais taciturno, raramente era expansivo. Então cantar, assobiar e caminhar resolutamente em direção ao porto, era coisa difícil de se ver. Pensou que ele deveria ter tido um bom dia. Ficara feliz ao trazer ao pai a notícia do navio chegando e assim contribuíra com o trabalho dos irmãos e do pai. Devia ser esse o motivo de sua alegria e expansividade.
Caminhando depressa, em pouco tempo chegaram ao porto. Ali não tiveram dificuldade de encontrar os familiares e lhes avisar de que o almoço havia chegado. Sem demora os filhos se reuniram em torno do pai ávidos por participar do almoço. Estavam com fome. O serviço de descarga foi temporariamente suspenso, até que todos tivessem se alimentado. Minck assistiu com uma pontada de orgulho os membros de sua família se alimentarem com gosto, comendo até se fartarem, além de beberem um suco preparado com uma fruta e água do poço. Terminado o repasto, os dois emissários, reuniram as vasilhas vazias, colocaram tudo nas sacolas. Despediram-se do pai e dos irmãos, voltando para casa. Iriam almoçar ao chegar. Quem trabalhava pesado, tinha preferência. Ao chegarem, a mãe e Song esperavam ansiosas por almoçar. Não haviam querido comer sem a presença deles dois. Minck especialmente, merecia participar com elas três presentes.
Ele contou em rápidas palavras a alegria do pai e irmãos diante da abundância da refeição, além do suco de frutas, muito saboroso e também nutritivo. Agora foi a vez de sentarem-se para comer por sua vez. Foi um momento de grande emoção em família. Sabiam que os homens da família estavam alimentados e poderiam comer sem remorso de deixar alguém com fome. O tio havia sido convidado a participar do almoço no porto e isso alegrou mais ainda Muhn. Comeram em silêncio, beberam suco e por fim guardaram os restos. Seriam aproveitados na hora do jantar. Nisso uma mulher muito pobre, bateu à porta, perguntando se teriam um naco de carne, pão ou qualquer coisa que pudesse lhe aliviar a fome. Não titubearam e lhe prepararam uma refeição completa, convidando-a a sentar-se na sombra de uma árvore que existia ao lado da moradia. A pobre mulher comeu sofregamente. Parecia não ter ingerido nada nos últimos dias. Isso levou Muhn a temer por seu bem-estar. Sabia que alguém ficando muito tempo sem comer, ao ingerir rapidamente uma quantidade significativa de alimento, pode sofrer de algum desarranjo gástrico. Ficou prestando atenção a ela, enquanto ficava sentada à sombra. Parecia não ter pressa de sair dali. Depois de um bom intervalo de tempo, sem nada acontecer de anormal, ela agradeceu mais uma vez e disse adeus. Levantou e foi saindo pelas vielas das proximidades.
Ninguém da casa a conhecia. Parecia alguém completamente desconhecido, mas não era de seu habitual despedir de mãos vazias alguém que implorava uma porção de comida. Na mente de Minck pareciam ressoar calorosas palmas, batidas por alguém que acompanhava seu dia. Logo lembrou do amigo Arki e também do Pai do Universo, presente em sua mente, por meio da fagulha. Durante uma hora aproximadamente, ficaram sentados, conversando, tentando lembrar de onde conheciam a mulher que pedira comida, mas ninguém lembrava de tê-la visto alguma vez.
– Deve ter chegado de fora, a procura de trabalho, algum parente e não encontrou. Sem dinheiro e trabalho, a pessoa fica na miséria e passa fome. Isso é muito triste.
– Gostei de ver você fazer uma bela refeição para ela, mamãe. Não devemos ser egoístas. Se em algumas situações a gente pode ser egoísta.
– Você virou filósofo, meu filho? De onde tirou essas ideias?
– Eu andei pensando sobre isso e cheguei à conclusão. Só isso, mamãe.
– Estou gostando, meu pequeno filósofo. Você pensou e concluiu muito bem. Só em situações bem especiais temos o direito de ser egoístas. Na maior parte do tempo não é direito fazer isso.
– Que bom que você concorda comigo, mamãe. Vou continuar pensando e tirando novas conclusões.
Ele entrevira ali o caminho para revelar à mãe suas ideias, as coisas novas que estava aprendendo com Arki, sem dizer exatamente o que acontecia. Literalmente falava por parábolas. Dessa forma não corria o risco de trair seu segredo, mas compartilhando algumas alegrias que iria sentir no futuro. Pelas amostras do primeiro dia, podia prever que coisas bem interessantes estavam reservadas para os dias que viriam pela frente.
Já estava ansioso por novo encontro com Arki. Queria lhe contar o que fizera, o que acontecera e saber se ele iria aprovar suas decisões, suas atitudes. Assim se sentiria mais seguro em novas oportunidades que viriam pela frente. Já tivera ocasião de detectar sinais da presença da “fagulha” na mente de sua mãe, do pai, até dos irmãos e irmãs. Cada dia, assim esperava, seria dado um passo na direção de desvendar o caminho para o Paraíso de que Arki falara com palavras tão entusiasmadas. Deveria ser algo pela qual valeria a pena lutar, não poupar sacrifícios nem esforços. Ele começara há menos de um dia e já colhera vários resultados confirmando o que o amigo lhe dissera. E até antes do encontro no alto do penhasco, era completamente ignorante no assunto.
À noite daria um jeito de subir no penhasco e ver se o amigo viria ao seu encontro. Se ele não viesse, pois talvez estivesse em outro lugar a serviço do Soberano, teria que ter paciência e não se apressar. Já tinha um bom começo e deveria continuar a trilhar esse caminho.
GRAÇA VIEIRA08/09/2015 at 1:00 PM
Que linda estória, Décio. Ansiosa fiquei eu, quando vais publicar o resto?
Décio Adams08/09/2015 at 2:32 PM
Que bom que você gostou. É o começo de um projeto que venho acalentando há algum tempo e nesse final de semana me animei para começar. Tem previsão de ser uma série de livros, mas sem previsão de quantidade de volumes, ou mesmo o fim da história.
Quanto ao resto, ele irá nascendo na medida em que minha imaginação me ajudar a colocar essas coisas na tela. Estou redigindo o segundo capítulo e pela minha previsão serão muitos capítulos. Espero estar à altura da grandeza da tarefa que assumi. Vamos ver no que isso resulta no final.
Muito obrigado pelo comentário, que traz junto um incentivo a dar continuidade da história.
Décio Adams.