Entardecer no rio Uruguai em São Borja. |
Túmulo de Getúlio Vargas em São Borja. |
Uma rosa para enfeitar. |
Contestação do testamento.
Alguns dias depois da páscoa, Joaquim estava deitado na rede da varanda de sua casa da fazenda quando foi surpreendido por um carro estranho que parou perto dos degraus. Um homem bem vestido, trazendo uma pasta sem detalhes nas mãos desceu e perguntou:
– Senhor Joaquim Medeiros?
– Sim, sou eu mesmo.
– Dá licença.
-Se aproxime! – disse Joaquim levantando-se e chegando mais para perto da beirada.
O homem subiu os dois degraus e parou diante do dono da casa.
– Eu sou oficial de justiça do fórum da Comarca de São Borja e tenho uma intimação para o senhor. Poderia me assinar o recibo de entrega?
– Mas intimação de que, homem?
– Aqui diz algo relativo ao seu testamento. Desconheço os detalhes.
Joaquim não tendo motivo para questionar o oficial de justiça que apenas cumpria sua obrigação de entregar os documentos emanados das varas judiciais da comarca, assinou o recibo e devolveu ao homem. Este lhe entregou o documento e pediu:
– O senhor teria um copo d’água para me oferecer? Estou com uma sede danada. Venho andando por essas fazendas afora e estou terminando graças a Deus.
– Ó Carmelita! Ó Carmelita!
– Chamou patrão?
– Traz uma jarra de refresco pro oficial de justiça aqui. O homem está morrendo de sede.
– Já trago.
– Queira sentar-se um instante. Ela já traz o refresco e eu também mato minha sede. Ia mesmo pedir isso no momento que o senhor chegou.
– Obrigado. Bela propriedade a sua seu Joaquim!
– Isso está na família desde mais de um século passado. Meu bisavô, Fulgêncio Vargas, morto na Guerra do Paraguai, já era dono de parte dessas terras.
– Se não me engano o senhor não tem filhos.
– Não tive a graça de ter filhos e depois que minha patroa faleceu, pensei que ia morrer. Quando me recuperei, decidi fazer um testamento. Não tenho parentes próximos que tenham direito à herança e nomeei meu afilhado, criado como filho meu herdeiro. Acho que a intimação tem a ver com isso.
– Parece que sim.
– Mas sabe alguma coisa sobre a origem desse processo?
– Alguém deve achar que tem direito e quer sua parte.
– Vou por isso na mão do advogado que me orientou na hora do testamento. Verificamos tudo e não tinha ninguém em linha direta. Só se for algum aparentado distante que se deu mal na vida e quer se dar bem às minhas custas.
– Quanto a isso não sei. Apenas vi o que está escrito aí na capa. Não tenho o hábito de xeretar os processos. Não são de minha conta. Quanto menos eu souber, menor é a chance de falar alguma palavra indevida.
– Admiro o senhor. Outros em seu lugar sairiam sabendo mais que o próprio intimado.
A empregada Carmelita trouxe o refresco e dois copos. Serviu e entregou a cada um deles.
– Mais alguma coisa, patrão?
– Não Carmelita. Se precisar eu chamo. Pode cuidar de seus afazeres.
– Com licença, – disse a mulher e se retirou rapidamente.
Saborearam o líquido, preparado com suco de uva guardado congelado do ano anterior. Era saboroso e revigorante. Era quase uva pura.
– Com sua licença, vou servir mais um pouco. A sede é grande e o refresco está divino.
– Fique à vontade…Serafim! É esse seu nome se não estou enganado?
– Serafim Gonçalves, um seu criado.
– Pode matar sua sede. Se faltar, mando preparar mais.
– Também não vou beber demais. Aí não consigo entrar dentro do carro depois. A barriga já está um pouco grande.
– Logo vai poder segurar o volante com a barriga nas retas e ficar com as mãos livres.
– Dá mesmo. Preciso emagrecer um bocadinho.
– Isso acontece quando a gente começa a ficar mais velho. Ninguém escapa de uma barriguinha.
– Mas a minha está ficando fora da conta. Hora de apertar a chincha.
– Fazer umas caminhadas ajuda um bocado. Eu todo dia cedo caminho por mais de uma hora. Saio sem rumo e caminho. Depois faço a volta e venho para casa.
– Mas obrigado pelo refresco, seu Joaquim. Preciso andar para pegar o fórum aberto e entregar os recibos das intimações entregues e devolver as que não foi possível entregar.
– A pressa é sua. Mas fique à vontade.
Ele levantou, estendeu a mão que foi apertada firmemente, depois embarcou no Fusca e partiu. A poeira ainda era visível na curva da estrada quando Gaudêncio chegou e encontrou o padrinho um pouco estranho.
– Que foi padrinho? Está aí meio acabrunhado? Algum problema?
Joaquim estendeu o documento que recebera pouco antes dizendo:
– Recebi essa intimação do oficial de justiça. Alguém está querendo causar encrenca com relação ao meu testamento.
– Mas quem?
– Aí diz um nome, mas eu nem conheço. Meus parentes vivos todos tem suas propriedades e não se opuseram ao testamento. Esse aí é desconhecido. Deve ser algum primo de quarto ou quinto grau que resolveu se dar bem em cima de nosso trabalho.
– É um tal de Isaias Vargas! Será patente do Dr. Getúlio?
– Meu bisavô era Vargas, parente distante da família do Getúlio. Bisavó Carlota, ficou viuva com uma filha pequena. Ele morreu lutando contra os homens do Solano Lopes.
– Vai ter que ver quem é esse daí. Se tiver direito, não tem problema padrinho. Tem capital para mais gente. Pra mim é até demais tudo isso.
– Isso é um extraviado qualquer que descobriu alguma ligação distante e resolveu querer um pedaço para viver folgado sem fazer esforço. Fica quieto no seu canto que disso eu cuido e boto esse cara no seu lugar.
– Nem que eu quisesse não poderia fazer nada mesmo.
– Seus pais e você labutam nessa fazenda há tanto tempo que se confundem até com a própria história. Agora vai vir um borra-botas à toa querer um pedaço! Mas nunca mesmo.
– Amanhã o senhor vai comigo a cidade. Tenho que ver sal mineral e outras coisas. Lhe deixo lá no escritório do advogado para ver isso.
– Vou mesmo. Quero tirar isso a limpo quanto antes.
– Soube que os pescadores estão vibrando de satisfação com a venda dos peixes. Quem comprou voltou para comprar mais, pois dizem que é muito saboroso. Os bares e lancherias estão fritando para acompanhar como tira-gosto com a cerveja.
– Ótimo. Demos uma tacada certeira.
– Os outros fazendeiros estão se mobilizando para que a cooperativa instale um criatório de alevinos para abastecer toda a região. Estão negociando com a associação dos pescadores uma forma de colaboração para ter estrutura capaz de dar conta de tanto peixe depois.
– Tudo isso devido à você. E vão dizer que não merece ser meu herdeiro. Se alguém pensa que vou deixar alguma coisa a qualquer vagabundo sem eira nem beira, está muito enganado.
– Padrinho, se acalme. Vai ver que ele está dando uma cartada. Não tem nada a perder e se sair com alguma coisa, por pouco que seja, é lucro para ele.
– Não vai ter é nada. Onde já se viu?
– Quem vai dizer a palavra final é o juiz. Vai lá saber o que o homem arrumou de provas e testemunhas. Não dá para se confiar em ninguém hoje.
– A gente passa a vida inteira lutando e sofrendo, para no final vir um sujeitinho desqualificado exigir uma parte do que a gente ganhou com suor. Isso não vou permitir.
– Vou me preparar para ir a escola. Acho que vou comprar uma moto que é mais leve, rápida e gasta menos.
– E mata mais depressa também. Nada disso. Faço questão de pagar eu mesmo o combustível para você ir a aula. Por falar nisso, como andam seus estudos?
– Estou indo bem, padrinho. Pensei que ia ser mais complicado, mas dei sorte. Minha turma é quase tudo de gente da minha idade, e até mais velho. Os professores são ótimos. Tem uns gatos pingados que gostam de fazer confusão e anarquia. Mas levaram uns dias de suspensão e parece que estão entrando nos eixos.
– Isso sempre acontece. No meio de uma cesta de frutas, têm algumas estragadas. Se não tirar elas dali, estragam o resto.
– Hoje mesmo vamos fazer prova de matemática e geografia. Quero ver como é que vou me sair.
– Estudou bastante?
– Sei tudinho na ponta da língua. Os exercícios de casa eu fiz tudo, o trabalho valendo nota entreguei e que eu saiba não errei nenhum exercício.
– Ótimo, meu caro. Continue assim. Ainda vou assistir sua formatura na faculdade.
– Isso não garanto. Mas o segundo grau vou tirar com certeza. Logo a Ângela vai querer casar e vem outros compromissos. Tenho que pensar em tudo isso.
– Mesmo assim pode continuar estudando. Não acho que ela vai querer que você pare. Vai é empurrar você para frente.
– Pelo menos foi o que ela disse quando contei que estava estudando, lendo um livro depos do outro. Até já melhorei minha redação.
– Tem escrito cartas para ela?
– Toda semana. A gente se fala no telefone, mas os detalhes digo tudo por carta e ela também faz o mesmo. Percebeu diferença entre minhas frases das primeiras cartas e as que escrevo agora.
– Está vendo só? Ainda vai acabar na política.
– Deus me livre e guarde, padrinho. Politica não quero nem passar perto.
– Mas se os homens honestos e decentes não entrarem na política, deixam o lugar vago para os safados, ladrões, corruptos ocuparem as vagas. Desse jeito nunca vamos ter uma administração que preste.
– Aqui em São Borja, enquando os milicos estiverem no poder, vereador não apita nada. Tem duas opções. Ou puxa o saco do homem nomeado e aprova tudo que ele quer, ou acaba jogado para um canto. Na próxima vez não se eleje nem para ser varredor de rua.
– Isso é verdade. Já passou da hora dos militares deixarem o osso e devolver o comando aos civis. O Doutor Getúlio foi ditador por quinze anos, mas fez um monte de mudanças para melhor. Tanto que depois o elegeram por mais um mandato. Quem não iria gostar de me ouvir dizer isso é seu futuro sogro.
– Mas tem gente que fala que no governo do Getúlio, só teve corrupção. Dá para entender alguma coisa nessa história?
– Acho que corrupção existe desde que o mundo é mundo. Basta ver o que Judas fez com Jesus Cristo. Vendeu ele e isso que era apóstolo do Homem.
– De fato. Mas vou andando, padrinho, ou me atraso para a aula.
Na manhã seguinte Gaudêncio e Joaquim foram até a cidade, cada um cuidando de suas ocupações. Encontraram-se para almoçar e depois continuaram. Gaudêncio iria ver como andava a comercialização das tilápias e Joaquim voltaria ao escritório do advogado. Este mandara solicitar uma cópia do processo no fórum para poder estudar o teor da ação impetrada e preparar a defesa ou mesmo pedir o arquivamento, caso não houvesse fundamentação suficiente. O contínuo havia saído por volta de 11 horas e não retornara. Provavelmente teriam acesso a uma cópia do documento por volta das 14 horas.
Gaudêncio encotrou os pescadores plenamente satisfeitos. Graças ao grande volume de carne de tilápias, haviam multiplicado o faturamento da associação e com isso fortalecido a renda dos pescadores. Ele foi recebido de braços abertos e logo lhe contaram dos entendimentos entabulados com a cooperatira dos rizicultores para formarem uma parceria. Pelo visto estava em andamento uma verdadeira revolução no setor, pois quase todos os plantadores de arroz queriam na próxima safra também colocar peixes em seus arrozais. Dessa forma o volume total seria multiplicado muitas vezes, exigindo uma estrutura bem mais ampla e sólida. Viam dias promissores pela frente.
Uma rosa para alegrar os olhos. |
Ao saír dali e dirigir-se à cooperativa onde faltava providenciar alguns itens para o setor leiteiro da fazenda, ele ia eufórico. Quando sugerira a criação de peixes nem de longe imaginara a dimensão que essa atitude viria a alcançar. Sem querer ajudara a melhorar o nível econômico de uma ampla camada da sociedade local, antes sujeira à sazonalidade da pescaria nos rios da região. Um bom estoque de carne de alta qualidade, trouxera um efeito surpresa para todos. Mesmo não tendo tido a intenção de causar isso, não podia deixar de sentir-se de certo modo responsável. Fora ele que acendera o estopim de tudo.
Joaquim saiu do escritório já bem tarde e não daria tempo de irem até a fazenda para depois voltar a tempo de participar das aulas. Decidiram ficar até ao término do turno letivo e então voltar para a fazenda. Havia produtos adquiridos que seriam necessários na fazenda no dia seguinte. As provas desse dia eram história e biologia, disciplinas que ele levava com um pé nas costas. A caseira de Joaquim providenciou uma refeição rápida para eles e depois Gaudêncio foi assistir suas aulas. Joaquim ficou lendo jornal, vendo um jogo na TV até que o afilhado chegou, um pouco mais cedo que o habitual. Termianra a prova antes e não havia por que ficar perdendo tempo no colégio.
Na viagem para casa ele contou ao padrinho sobre o estado de ânimo dos pescadores e ele ficou satisfeito. Era muito recompensador saber que de uma ação visando seu próprio lucro, derivara também um enorme benefício para um grande grupo de pessoas, antes entregues à própria sorte nas águas dos rios. Saber que o exemplo movimentava a quase totalidade dos plantadores de arroz, era também uma ótima notícia. O fato de a cooperativa se encarregar de trazer os alevinos e distribuir aos associados era facilitador de tudo. Também representava um suporte econômico para a nascente indústria do pescado no município. Carecia de organização, gerenciamento e logística para obter o máximo de rendimento da matéria prima que seria produzida, onde antes não havia nada, além do arroz.
A piscicultura ali desenvolvida, vinha somar para a melhoria de todas as formas. Quer na sanidade dos arrozais, quer na produção de carne de excelente qualidade e por consequência adicionar renda aos cultivadores, bem como aos que atuavam na industrialização. Os benefícios alcançavam uma vasta gama de pessoas em todos os cantos do município, e mesmo nos vizinhos.
Apesar das boas notícias, Joaquim ia um tanto meditativo no caminho de casa. O afilhado, depois de narrar detalhadamente as novidades, prestou atenção um momento e falou:
– Que está acontecendo, padrinho? Estou vendo o senhor meio triste. No que deu o tal processo?
– É um “bunda suja” de um moleque. Descobriu que o trisavô dele foi primo ou irmão do pai de meu bisavô. Herdou uma boa propriedade do pai e gastou tudo em farra e baderna. Agora que está na merda, resolveu achar que tem direito a uma parte de minha herança. Pode um negócio desses?
– Bem padrinho, de leis eu entendo menos que o senhor. O que o advogado falou?
– Ele disse, que se não houvesse testamento e em caso de minha morte, ele conseguiria ser declarado meu herdeiro, por conta do parentesco, mesmo o bem remoto. Mas parece que andou arrumando uns mequetrefes de uns caboclos que são testemunhas. Aí é que a coisa complica. Parece que eles afirmam que ele foi criado na fazenda junto comigo, e uma porção de mentirada. Vamos ter que provar o contrário para que isso não pese na decisão do juiz.
– Mas disso acho que tem testemunhas suficientes. Ou não tem?
– Na verdade não são assim tão fáceis. Isso se refere a coisa antiga. Eu chamei ele de moleque bunda suja, mas ele tem quase minha idade e isso torna a coisa mais complicada. Quem poderia servir de testemunha a meu favor já não está vivo.
– Meu pai e minha mãe não servem?
– Servem, mas tem o problema de serem meus empregados de longa data. Podem alegar que estão comprados, ainda mais que eu nomeei você, filho deles meu herdeiro. Eles se tornam parte interessada.
– Ai caramba!
– Mas vamos pensar com calma. Vamos rebuscar a memória e descobrir alguém daquele tempo que esteja vivo em algum lugar por aí. Há de ter alguém, há de ter.
– Em último caso o advogado não consegue desqualificar as testemunhas dele também?
– É uma hipótese, mas não se pode contar com isso somente. Se não der certo o juiz declara nulo meu testamento e ele se torna meu herdeiro. Já imaginou o tamanho da porcaria?
– A essa altura eu até me acostumei a ser seu herdeiro. Ele não aceita dividir a herança?
– Mas que dividir Gaudêncio! Isso não vale nada. Se botar as mãos naquilo lá, enquanto eu estiver vivo vai me arrancar tanto dinheiro que no final só vai sobrar o osso.
– Pensei em a gente oferecer um bom valor e ele ficar quieto. Mas isso não resolve. Sempre vai encontrar novo motivo para voltar e pedir mais. Ficaria fazendo chantagem até o fim da vida dele.
– Exatamente isso que eu quero evitar. Amanhã vamos sentar com compadre Pedro e comadre Conceição. Vamos recordar de tudo que é gente que viveu na fazenda ou por perto e que está perdido em algum canto desse mundão de Deus.
– Isso pode até demorar um pouco, mas vamos encontrar algume sim.
– Deus que lhe ouça, garoto. Deus que lhe ouça.
Estavam chegando e Gaudêncio estacionou cuidadosamente a caminhonete na garagem que lhe era própria. Desembarcaram, encontrando Carmelita ainda em pé, esperando com fogo no fogão e comida pronta para servir.
– Demoraram, patrão. Vão querer comer agora?
– Não sei o Gaudêncio, mas eu não vou querer nada. Desculpe! A gente deveria ter avisado de que viríamos tarde. Poderia ter ido dormir.
– Tem problema não, patrão. Estou aqui para lhe servir.
– Isso não é justo. Ficar aí acordada até essa hora e a gente chegar sem querer comer nada.
– Padrinho, acho que vou fazer uma boquinha. A comida da Carmelita é ótima. Eu na pressa de ir para aula, comi bem pouquinho e estou com fome.
– Eu vou sentar e lhe fazer companhia. Enquanto isso a gente conversa mais um bocado.
Sentaram-se e Carmelita não tardou a por a comida sobre a mesa. Não era nada pesado. Um ensopado de carne com legumes e arroz de pilão, como só ela sabia fazer. Gaudêncio vendo a leveza do prato e o cheiro apetitoso, serviu-se de uma generosa proção. Depois da primeira colherada, estalou a língua em sinal de aprovação. Nesse momento Joaquim não resistiu e também serviu um pouco, dizendo:
– Isso fica por conta da gula. Se eu morrer do coração antes da hora, é culpa sua.
– Vire essa boca para o outro lado, padrinho. Vai morrer coisa nenhuma. Ainda mais agora que apareceu esse projeto de parente querendo se tornar herdeiro. Não queira me deixar sozinho com esse abacaxi na mão.
– Inda vou segurar na alça de muito caixão, antes de deitar em um deles.
– Assim mesmo que se fala, padrinho. Sabemos que vamos morrer um dia, mas para que ter pressa, não é verdade?
– Também acho. Mas nunca se pode saber o que vem depois da próxima curva da estrada. Veja meu irmão mais velho e meus pais. Poderiam estar todos vidos até hoje, mas aquela maldita tempestade jogou eles com o avião contra as pedras da Serra do Mar. Sobrou quase nada para contar a história.
– Pare com isso. Não é hora de recordar coisas tristes. Nós ainda vamos fazer muitas festas juntos. Vou querer ver o senhor segurando os meus potrinhos e potranquinhas no colo.
– Não é uma má ideia, tratar meio logo desse seu casamento, não acha?
– Ficamos noivos faz poucos dias. Temos que dar um tempiho para não parecer que estamos com a corda no pescoço.
– Mas e tem motivo para ficar com a corda no pescoço?
– Para lhe ser franco, padrinho. Vontade não faltou, mas os dois somos ajuizados e soubemos nos controlar. Quando estou junto dela quase fico louco. Ela também tem um tesão por mim que chega a gemer. Mas nos mantemos na linha para não arrumar confusão.
– Vão ter o resto da vida pela frente para se amarem depois. Pra que ter pressa? Sempre ouvi dizer que o apressado come cru.
– Também acho, padrinho. Por isso a gente evita de passar dos limites, pois se soltar a corda! Adeus tia Chica!
– Na juventude os hormônios ficam agitados. Faz parte da natureza, o instinto de procriação. É igual um garanhão perto de uma potranca no cio. Ele fica indócil. Ninguém segura.
– Carmelita! Você vai acabar engordando a gente fazendo comida tão gostosa. Ainda mais a uma hora dessas. Mas eu estava com fome e tenho que te dizer: Obrigado!
– Não há de que, sinhorzinho!
– E essa agora! Me chamando de sinhorzinho! Larga mão disso, mulher. Sempre fui e continuo sendo Gaudêncio das Neves.
– Não há de que, seu Gaudêncio.
– Assim está um pouco melhor. Mas por mim pode dispensar esse “seu” aí.
– Você é impagável, Carmelita. Não foi à toa que a finada lhe tinha tanta estima e consideração.
– Que Deus a tenha na sua glória.
– Amém. – disseram os dois em uníssono.
Carmelita recolheu a travessa com o resto do ensopado, depois os pratos, talheres e copos. Joaquim fora até o armário e retirara de lá uma garrafa de vinho dali mesmo da fazenda, mas guardada há uns 7 ou 8 anos e abriu. Serviu uma taça a cada um e decidiram ali mesmo fazer todo esforço possível para esclarecer a questão relativa ao testamento. Ninguém iria vir se apoderar gratuitamente dos bens tão laboriosamente reunidos ao longo de gerações. Ele mesmo, Joaquim, dera um novo impulso ao assumir o controle, herdara junto do a esposa mais outra parte, aumentando grandemente a área total da fazenda. Nunca deixaria que alguém, sem direto a nada, se adonasse de tudo sem mais aquela.
Sabiá laranjeiras chocando a ninhada. |