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Na senda dos monges ! – Capítulo IX – Dominando as letras e números!

 

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Carreta usada na época dos tropeiros, peça do museu
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Gravura da Feira de Sorocaba, de Getúlio Delphim.

 

  1. Dominando as letras e números.

 

Na próxima viagem para Sorocaba, João Maria estava com dois cargueiros abarrotados de objetos para comerciar. Eram de fabricação local e não faziam concorrência com as mercadorias do dono da tropa. Integrou-se ao grupo e trabalhou com mais afinco no desempenho das suas funções de empregado. Numa das primeiras noites da viagem, reparou em um senhor já mais idoso, pouco ativo na lida com os animais, mas sempre próximo do líder da tropa. Indagou do amigo quem era aquele homem e ficou sabendo tratar-se de um homem letrado. Era versado em matemáticas, fazia todas as contas do patrão. Tinha fluência no escrever, sabia até espanhol e italiano.

– Eu bem que queria aprender a ler e escrever, fazer contas.

– Isso é coisa para poucos. Muito difícil aprender, – falou o velho tropeiro.

– Mas se começassem a ensinar a gente quando pequeno, não ia se tão difícil. Depois de burro velho é claro que fica difícil.

Sem eles perceberem o senhor Feliciano Chaves se aproximara e ouvira as últimas palavras. Ficou curioso e indagou:

– O que é que burro velho tem dificuldade em aprender?

– O João aqui disse que gostaria de aprender ler e escrever, fazer contas. Eu disse que é muito difícil. É coisa para poucos.

– Não é nada difícil. O mais importante é ter vontade de aprender. O que move o aprendizado é a vontade, a curiosidade.

– Tá vendo, seu Aparício! O homem está dizendo que não é impossível aprender ler e escrever.

– Você gastaria algumas horas do seu descanso para aprender?

– Eu até gastaria, mas quem ia querer ensinar?

– Se eu estou perguntando é por que posso mostrar como se faz. Mas precisa perseverança. Tenho comigo um bocado de papel que foi usado de um lado e ia jogar fora. Podemos usar do outro lado para você aprender.

– Podemos começar hoje mesmo?

– Hoje ainda não. Tenho umas contas para terminar para o patrão, antes de dormir. Amanhã podemos começar. Vou tratar de fazer as contas e depois vou dormir. Amanhã o dia é puxado.

O jovem ficou entusiasmado com a perspectiva de saber ler e escrever, fazer contas. Estava olhando longe, no dia em que seria comandante de uma tropa de propriedade da própria família. Se soubesse ler e escrever, fazer contas poderia negociar melhor. Não teria que depender de alguém para fazer isso por ele. Se o seu Feliciano se dispunha a ensinar essa arte, ficaria para sempre agradecido. Mal sabia ele que o bom homem estava procurando alguém para lhe ajudar. Era muito trabalho que tinha a fazer sempre no começo e final das viagens. No meio do caminho não havia muito serviço, mas na hora das vendas, novas compras, calcular os lucros, descontar os prejuízos e gastos, o pagamento das despesas. Um ajudante seria bem-vindo com certeza.

João Maria passou o tempo antes de dormir falando da expectativa de saber ler e escrever, importunando os ouvidos do companheiro de jornada. Por fim Aparício dormiu enquanto ele ainda falava. Em dado momento se deu conta de estar falando sozinho e o acampamento inteiro dormia. Puxou o poncho sobre a cabeça e também procurou conciliar o sono. Pela manhã, logo cedo estava acordado e ativo. Foi o primeiro a cuidar dos animais de montaria, dos cargueiros. Na hora do desjejum já estava levemente sado, apesar do frio da manhã. Passou o dia em atividade fabril, levando outros a perguntar o que lhe dera e ele por fim confidenciou a alguns mais chegados, que iria aprender ler e escrever.

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Gravura de tropeiros em marcha.

 

Foi motivo de risadas gerais, especialmente dos mais velhos, mas não se importou. Mostraria a todos de que ele era capaz. Se outros podiam aprender, ele também o fariam. Ansiava pelo final do dia, quando o seu Feliciano o chamaria para a primeira lição. Depois de acomodar a tropa e arrumar o acampamento, viu o velho escriturário arrumando um cavalete e sobre ele colocar umas tábuas, formando uma pequena mesa. Já estava livre das tarefas e se aproximou perguntando se poderia ajudar, ao que ouviu:

– Venha aqui que vamos começar, enquanto o jantar não fica pronto. Vamos aprender primeiro os números, que é mais fácil.

Tremendo de emoção o jovem sentou-se e ficou esperando. Logo tinha diante de si um pequeno quadro, uma espécie de moldura, com uma placa cinza escura na parte interior. Além disso uma haste de metal com uma extremidade afilada. Era a lousa e o estilete para escrever. Iria usar a lousa antes de passar para o papel. Ali poderia escrever e apagar quantas vezes fosse necessário e só quando dominasse a arte de escrever e fazer contas, começaria a escrever no papel. Mal pode esperar pela primeira lição. O preceptor, embora não tivesse recebido nenhuma formação para o ensino, tinha o dom natural de desempenhar essa função.

Para ensinar os números usara a associação de objetos concretos com os numerais, facilitando dessa forma o aprendizado. Após uma hora e pouco, quando foram chamados para jantar, João Maria já sabia rabiscar os primeiros algarismos. Depois de comer fariam mais um pequeno avanço antes de descansar. O simples fato de iniciar seu aprendizado, deixou o rapaz eufórico. O companheiro Aparício o viu todo excitado com o que conseguira aprender naquele tempo tão curto e se convenceu de que ele realmente iria conseguir. Não imaginara que isso fosse possível para alguém depois de atingir a idade madura. Se seus ossos não estivessem já um tanto duros, talvez até se aventurasse também a aprender.

A partir dessa noite, praticamente todos os dias estava João Maria, sentado ao lado de Feliciano, muitas fezes empenhado na realização de tarefas passadas pelo instrutor, que por sua vez se ocupava em se desincumbir de suas funções. Estava entusiasmado com a velocidade que o aprendiz demonstrava ter no domínio de cada novo ensinamento. Parecia antever o que viria e logo estava desenhando os números e letras que aprendera. Mais alguns dias e já saberia ler algumas palavras, talvez escrever pequenas frases. Era encorajador assistir ao seu progresso.

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Feira de Sorocaba, gravura de Getúlio Delphim.

 

Ao chegarem em Sorocaba, depois de algumas semanas, o jovem aprendiz de primeiras letras já conhecia o alfabeto, conhecia as principais sílabas e escrevia algumas frases curtas. No meio do caminho haviam encontrado alguns exemplares de jornais velhos, folhetos de propaganda de remédios e outras coisas escritas. Tudo era guardado por João Maria. Nas horas de descanso, estava sempre decifrando alguma coisa escrita. Quando enroscava em alguma palavra mais complexa, perguntava ao mestre que se encarregava de esclarecer. Em algumas ocasiões era obrigado a ler o texto para poder explicar o significado, pois suas letras não eram lá essas coisas tão aprofundadas.

O Líder da tropa fia com bons olhos o empenho do jovem em aprender. Pensava no dia em que o velho ajudante não pudesse mais acompanha-lo nas viagens. Teria de um substituto mais jovem e preparado pelo antigo ajudante. Muitos tropeiros velhos e calejados, olhavam admirados o empenho do jovem em ler e escrever. Houve que lhe profetizasse um futuro brilhante, pois era sabido que pessoas letradas sempre tinham maiores chances de progredir do que os trabalhadores braçais. Os dias de estadia na feira foram de trabalho intenso. As continhas aprendidas na viagem foram úteis para orientar suas ações na negociação das mercadorias que trouxera.

Soube fazer o cálculo do lucro obtido e isso lhe trouxe um prazer indescritível. Havia ganho mais que o dobro do preço pago na origem. Ao começar a viagem nem imaginara que, ao chegar ao final, saberia fazer a conta do lucro obtido. Mostrou suas contas ao mestre que lhe mostrou alguns pequenos erros cometidos, de modo que o lucro era um pouco maior que que calculara. Mas era pequena a diferença. Precisava aperfeiçoar suas técnicas de cálculos. Enquanto permaneceram em Sorocaba as lições ficaram interrompidas, para serem reiniciadas logo que começassem a volta.

Ao chegar em Santa Maria, foi um João Maria eufórico que se apresentou à família. Estava sabendo escrever algumas palavras e principalmente fazer as contas mais elementares. Vendeu os produtos que comprara para trazer, entregou as encomendas recebidas e reuniu tudo, fazendo o balanço da viagem. Sentaram-se em família para fazerem um levantamento do que dispunham em capital para iniciar a abertura da área de terras requerida. Depois de somar tudo que haviam guardado, João fez uma estimativa, que em um ano poderiam começar a dar os primeiros passos. Talvez até antes, se conseguissem alguns dias de folga para irem pessoalmente fazer parte do serviço.

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Tropeiros atravessando rio.

 

A dificuldade era o fato de Antônio ter o ombro esquerdo imóvel e João não poder se afastar da fazenda. No final combinaram que, Antônio poderia desempenhar o serviço de capataz na ausência de João. Este e o sobrinho João Maria, iriam com dois ou três peões trabalhar na abertura do local da construção, preparação de toras para serraria e seu transporte para a serraria. Mal terminaram de fazer o serviço e já era hora de iniciar nova viagem para Sorocaba. João Maria estava ansioso por fazer nova viagem e dar prosseguimento às lições de escrita e leitura. Agora já podia aprender as contas mais complexas, como porcentagens, juros e coisas assim. Era bem mais complexo, mas com algum esforço conseguiu também aprender esses passos.

Com certeza jamais seria um erudito, mas não dependeria de ninguém para lhe fazer as coisas mais elementares, quando quisesse organizar suas próprias tropas, levando os animais produzidos na propriedade da família. Projetava transportar quantidades consideráveis de erva mate para revender e assim alavancar os negócios. Sonhava alto o rapaz. O tio ficou espantado com a rapidez que ele demonstrava em aprender os segredos da escrita, leitura e aritmética. Em alguns meses estava apto a ler com bastante fluência e redigir pequenos textos, sem dificuldade. Não perdia ocasião para ler tudo que lhe aparecesse. Bastava conter letras ou números e ele estava disposto a ver do que se tratava. Tanto empenho, só poderia resultar em um desenvolvimento fora do normal.

No tempo que tinha disponível até a próxima viagem para Sorocaba, aproveitaram e fizeram a roçada e derrubada para localizar a sede da propriedade, além de um bom pedaço de pasto, especialmente numa área onde a vegetação era menos densa, na área mais próxima da água. Ali o capim cresceria mais viçoso, devido a umidade e assim permitiria um bom desenvolvimento da criação. Alguns dias antes de iniciar a viagem, deixou o tio e os peões terminando o serviço começado e tratou de adquirir as mercadorias que levaria junto na tropa, em seus dois cargueiros. Cuidou para não misturar os objetos de comércio do patrão com aquilo que levava para seu comércio particular. Não desejava criar atritos.

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Gado vadeando um curso d’água na tropeada.

 

A primavera estava próxima. Era hora de iniciar a viagem. Assim seria possível fazer até duas, antes da entrada do próximo inverno. João Maria encontrou com Feliciano que lhe estava ensinando os rudimentos da escrita e matemática. Passaram uma semana preparando a parte burocrática inerente ao total da tropa e mercadorias que seguiriam nessa remessa. Era ocasião de praticar o que aprendera e adquirir prática na elaboração do controle necessário para manter as contas em ordem. Era preciso saber o quanto havia custado cada unidade e o preço pelo qual poderia ser vendido, sem que isso significasse prejuízo. Havia que levar em conta cada tostão despendido no caminho, seja com alimentos, despesas inesperadas, pousos mais prolongados, pastagens. Tudo representava custos determinantes do resultado final de uma viagem bem sucedida.

Alguns dias antes da primavera ter início em termos cronológicos, partiram de Passo Fundo, onde haviam se reunido boa parte dos integrantes da comitiva. Um lote adicional de mulas estava esperando nas proximidades da divisa com Santa Catarina/Paraná. Pouco antes do Natal estavam chegando de retorno, trazendo as bruacas recheadas de mercadorias compradas em Sorocaba, bem como um variado sortimento de erva mate para distribuição por toda região. O clima ajudara e haviam demorado pouco em cada pouso. Apenas o suficiente para refazer os animais do cansaço da viagem, uma boa forragem de pasto para aguentar mais uma etapa e a caminhada prosseguira. A volta havia sido mais rápida do que o esperado.

Todos os momentos de folga foram aproveitados por João Maria, agora já dominando a escrita e cálculos básicos para exercitar o que havia aprendido. Quando surgiam dúvidas perguntava ao mestre Feliciano, como o chamava. Quando este também sentia dificuldades em explicar pedia ajuda ao “Pai dos Burros”, um velho dicionário que estava todo ensebado de tanto uso. Assim ia dominando aos poucos as palavras mais complexas. Era assíduo leitor de jornais obtidos em Sorocaba e deles trazia um bom sortimento, especialmente de artigos importantes que recortara. As propagandas eram menos interessantes e só serviam para fazer volume, por isso eram descartadas na medida do possível. Os outros peões ficavam ora curiosos pelas leituras que o colega fazia, ora faziam mofa de seu empenho em saber ler. Na opinião da maioria isso servia para pouca coisa.

Eles que ficassem com suas opiniões. Mal sabiam que ele estava conquistando seu passaporte para uma vida diferente do que vinham vivendo seu pai, tios, avô e bisavô. Tinha ambição e queria sair do lugar comum da vida de peão do nascer ao morrer. Por enquanto era peão, mas não morreria nessa condição, disso tinha certeza. O que não valia a pena era apregoar tais ideias, para não ser motivo de chacota. Já tinham suficiente para lhe amofinar a paciência com o seu desempenho na primeira noite com uma mulher. A cada pouco tempo alguém lembrava e imitava os gemidos e resmungos que haviam ouvido mantendo-se colados à parede do lado de fora do quarto.

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Mulas de carga e parte da tropa a caminho de Sorocaba.

 

A melhor coisa a fazer era deixar que falassem sem se sentir avexado pois, quanto mais ficasse chateado, mais sentiriam satisfação em lhe apoquentar. Ficara uma dúvida em sua cabeça na forma de calcular os preços do custo final e o lucro sobre os produtos transportados. Isso envolvia questão de porcentagem e ainda não havia compreendido bem essa parte. Sempre que Feliciano dispunha de alguns minutos de tempo, lá estava João Maria a lhe interrogar como fazia essa ou aquela conta. De tanto repetir, por fim ele entendeu e nunca mais esqueceu. Muitos anos mais tarde, sabia fazer esses cálculos todos sem problemas. Em cada ocasião lembrava da paciência de Feliciano em lhe explicar. O bom homem havia viajado em companhia de tropeiros até idade avançada. Só parara quando não mais conseguia se manter sobre a sela e os olhos não mais ajudavam a enxergar os números e letras.

Tinha amealhado um pequeno pecúlio com o qual viveu até seus últimos dias, na periferia de Passo Fundo, com a esposa e uma filha viúva. Quando ele pendurou a sela e guaiaca, João Maria já havia há anos assumido por conta a condução de tropas. A propriedade de Passo Fundo estava em plena atividade, com um bom plantel de éguas e vários jumentos para fazer a cobertura. A cada ano uma tropa de mais de quinhentas mulas saia da propriedade, além de um bom lote de gado de corte para charqueada. Compravam nas redondezas e mesmo de propriedades da fronteira mais outro tanto de mulas, de modo a transportar a cada viagem em torno de 800 a 1000 animais. Nas cargueiras eram transportados artigos típicos da região com boa aceitação em Sorocaba.

No império do Brasil a escravidão negra estava caminhando para a extinção, seguindo o exemplo de outros países. Há tempo o tráfico estava proibido. Depois viera a Lei do Ventre Livre, isto é, filhos de escravos nasciam livres. A Lei dos Sexagenários, tornando livres os escravos com mais de 60 anos de idade, de modo que o número de escravos decrescia gradativamente. Em 1885, durante uma de suas primeiras viagens por conta própria, João Maria voltou e encontrou a família de luto. O avô Afonso, que tantas histórias lhes contara, ensinara a manejar o velho mosquetão até ser capaz de acertar um palito a mais de 50 metros, mesmo com o cano gasto de tanto usar, havia falecido. Adormecera igual um passarinho e esquecera de acordar na manhã seguinte. A avó Zulmira não demorou muito para seguir os passos do marido. Deixaram saudades, mas haviam vivido uma vida repleta de realizações, além de superar grande número de dificuldades próprias da época.

Em 1886, estando os primos e irmãos todos casados, restando apenas João Maria solteiro, finalmente encantou-se com uma morena, filha de mãe bugra. Em pouco tempo a levou até o padre mais próximo e pediu para que os casasse. Ao chegar em casa com a mulher na garupa, todos indagaram o significado daquilo e ele apenas informou:

– Ela agora é minha mulher. Vamos fazer uma festa para comemorar. Não precisa preocupação pois o padre já nos casou e o juiz confirmou.

Acostumados com as excentricidades do filho, Antônio e Isabelita balançaram as cabeças pensativos, concordando. Uma semana depois, os peões da propriedade, os primos e irmãos estavam reunidos para festejar o enlace matrimonial, um pouco fora dos padrões normais, mas o noivo era assim mesmo. Não se ligava muito em formalidades. Isabelita falou ao marido:

– Nós nem podemos dizer nada. Nós fugimos e casamos quando nossos filhos já tinham nascido.

– Era isso mesmo que me ocorreu antes. Quando pensei em dizer alguma coisa, lembrei de nós fugindo pelos campos da Argentina, resolvi ficar bem quieto.

O casamento acontece pouco tempo depois da viagem a Sorocaba. João Maria voltara um pouco preocupado. Os negócios não andavam muito bem por lá. Algumas linhas de ferrovia haviam sido construídas e com isso boa parte do transporte de café e outros produtos era feito por trem, reduzindo assim a demanda de animais de carga. Quem ainda procurava por eles eram os cafeicultores da região serrana de Minas Gerais, onde era preciso recolher o grão dos cafeeiros plantados nas encostas e para isso nada melhor do que uma mula.

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Museu do tropeiro, cangalha e bruacas de taquara.

 

Em companhia com o pai e tio, sócios na propriedade, sentaram para confabular sobre o que fazer. As suspeitas de João Maria eram ainda pouco aprofundadas, mas ele parecia ver mais à frente. Lera nos jornais notícias cada vez mais veementes sobre pronunciamentos de abolicionistas e previa que logo a escravidão seria abolida. Com certeza isso iria provocar alguma mudança política no país. Não saberia dizer o que, mas sentia cheiro de mudança na forma de governo. Mesmo não sendo especialista em política, podia perceber nas entrelinhas dos artigos que lera, a tendência à implantação de uma República, à semelhança dos países vizinhos Uruguai, Argentina, Paraguai.

Diante do quadro exposto por João Maria, João e Antônio sugeriram mudar gradualmente de ramo, passando a criar gado de corte em lugar das mulas. Estavam mesmo precisando reformar o plantel de éguas para criar. Era ocasião de trocar as éguas por vacas e um ou dois touros. Começariam a vender carne, em lugar de besta de carga. Os lucros auferidos nos últimos anos, estavam em parte guardados para as emergências e poderiam ser perfeitamente aplicados na mudança de rumo. Decidiram manter as éguas para mais uma recria, mas começariam a procurar vacas para ampliar a criação de gado. Um lote de novilhas, em princípio destinadas ao abate, seria deixado para matrizes e assim dependeriam menos de investir capital no processo.

Em menos de dois meses a esposa de João Maria estava grávida. Sua beleza mestiça ficou ainda mais realçada, deixando o marido, um pouco madurão ainda mais apaixonado. Naquela temporada não faria a segunda viagem. Deixaria para a próxima primavera, quando teriam um lote maior e levariam tudo de uma vez, economizando dessa maneira os gastos da viagem. Logo nos primeiros sinais de arrefecimento do inverno, João Maria partiu com a tropa. Nem se empenhara demasiadamente em trazer muitos animais da fronteira, pois tinha o pressentimento que a procura iria ser pouca. Foi o que aconteceu. Conseguiu vender o que levara, mas não faltou nenhum animal. Nenhum comprador ficou sem ter suas necessidades supridas. Alguns tropeiros haviam deixado de tocar tropa, trocando por outras atividades, ou por levar apenas cargas em outros caminhos.

O retorno aconteceu na antevéspera do Natal. A esposa Ceci de João Maria, estava a poucos dias de parir. Seu ventre estava redondo, os seios entumecidos se preparando para aleitar o filho. Logo depois do Ano Novo, no dia 15 de janeiro, começou o trabalho de parto. A parteira mais próxima foi chamada e fez tudo que podia para ajudar a jovem a ter seu filho. Por mais que fizesse, ministrasse infusões de ervas para provocar a dilatação, nada parecia adiantar. Depois de quase vinte horas de sofrimento, em determinado momento ela soltou um grito surdo e emudeceu. Seu corpo jovem sofrera algum rompimento interior e ela perdera a vida. Sem hesitar a parteira fez uso de uma faca afiadíssima que carregava na bolsa, cortou a pele e o útero, retirando dali a criança que ainda estava com vida.

A mãe morta foi deixada de lado e a criança recebeu toda atenção. Depois de vários minutos ela finalmente teve um pequeno espasmo e logo soltou um gemido, querendo ser choro. Estava enfraquecida depois de ficar longo período em sofrimento sem conseguir nascer. O útero estava cheio de sangue, fazendo supor ter havido o rompimento da artéria que causara a morte da mãe. Ficou João Maria viúvo, menos de um ano depois de casar e com uma filha pequena nos braços. A avó Isabelita se prontificou a tomar conta da criança. O filho, acostumado a lidar com coisas menos delicadas, não saberia cuidar de um ser tão delicado como ela. Mesmo assim a criança era bem desenvolvida Tão logo conseguiram fazer algum alimento chegar ao seu estômago, ela começou a se refazer e o rostinho ficou corado.

João Maria pranteou a esposa por vários dias, antes de conseguir se aproximar da filha. Parecia de início estar revoltado com a criança por ter sido a causa da morte de sua mãe. Quando enxugou as lágrimas, pegou a criança no colo, aninhou-a junto ao peito e ficou longos minutos ali, vertendo lágrimas, agora de amor e ternura pela pequena. Era o fruto do amor que o unira à Ceci que tinha nos braços. Infelizmente Deus não havia permitido que ele tivesse as duas juntas. Uma partira para que a outra ficasse em seu lugar. A esposa de um dos empregados tivera filho poucos dias antes e seus peitos tinham leite em abundância. Logo lembraram dela e, em troca de uma gratificação, passou a amamentar a pequena. Vinha várias vezes ao dia dar de mamar à criança.

Em alguns meses já era possível fazer com que ela se alimentasse com sopinhas e alimentos mais sólidos, deixando de ter a necessidade premente do leite materno. Mesmo assim mamara, mas agora mais espaçadamente. Depois de alguns meses, João Maria preparou nova tropa para levar à Sorocaba. Partiu com o coração apertado, deixando para trás a filha, agora com oito meses de vida. Já sorria, se alimentava regularmente e ameaçava ficar em pé, apoiada nas perninhas. Era a alegria dos avós e do pai. Durante a viagem não passou um dia sem pensar na filha, uma porção de vezes. Fez o propósito de procurar um presente bem bonito para comprar e trazer para ela. Por mais que procurasse, nada encontrou que julgasse digno de sua pequena Isabel. Dera-lhe o nome da mãe, apenas tirando do diminutivo.

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Roupas e apetrechos de tropeiros.

 

Ao voltar ela estava com quase um ano de vida e, a não ser por ela, a vida de João Maria parecia completamente vazia. Não sentia a antiga alegria de viver, a disposição para trabalhar por horas sem parar. A vida de Ceci, ligada a ele por um período tão curto, parecia ter levado uma parte de seu ser para o túmulo. Precisava reencontrar sua antiga disposição, afinal tinha a responsabilidade de criar a filha que ficara. Ela, tão pequena e frágil, certamente não tinha culpa alguma do ocorrido e merecia ter o melhor ao seu alcance para crescer feliz. Ao reencontrar com ela, pareceu reviver em parte, embora uma leve sombra pairasse sobre seu semblante continuamente.

O aniversário de nascimento de Isabel, era também o de morte de Ceci. Portanto a comemoração ficou para um dia posterior. Não sentia vontade de comemorar nada, logo no dia em que completaria um ano sem a sua amada Ceci. Demorara longos anos para se enamorar, mas quando isso ocorrera, fora algo avassalador como uma tempestade. O coração ficara pulando no peito igual um potro xucro, fazendo o sangue pulsar nas veias como um balão inchando e desinchando alternadamente. Havia apressado o casamento. Sempre tinha a impressão de que pressentira a perda prematura da mulher amada. Deixara em seu lugar a pequena Isabel. A única coisa que se permitiu fazer no dia do aniversário foi levar a filha no colo até a sepultura da mãe e lhe dizer calmamente:

– Querida Ceci! Aqui está nossa filha. Você a deixou comigo e vou cuidar dela para sempre. Descanse em paz meu amor.

Voltou abraçado à filha, com os olhos vermelhos de chorar, enquanto a pequena, percebendo em sua inocência a tristeza do pai, tentava fazer carinho em seu rosto. Diante desse gesto ele enxugou o pranto e falou:

– Minha filha! Somos nós dois que vamos cuidar um do outro. Sua mãe está lá no céu, junto com Deus e Nossa Senhora. Vai ficar olhando por nós enquanto vivermos nessa terra.

Logo a menina começou a caminhar, exatamente no dia de seu aniversário. Esse gesto fez João Maria recobrar a alegria. Em seus passinhos vacilantes, mesmo assim parecia ter a graça e leveza do andar de Ceci. Os avós Antônio e Isabelita estavam eufóricos com o progresso da neta. Ela lhes dizia que, a mãe não pudera ficar com eles, mas ela estava ali e merecia a comemoração de sua data natalícia. Mas era tarde para organizar qualquer coisa. Preparariam um almoço especial para o dia seguinte e convidariam os padrinhos, primos e demais crianças para estarem presentes. Assim foi feito.

Depois do almoço um bolo foi cortado, refrescos foram distribuídos entre os presentes e, na ausência de presentes, ela ganhou muitos abraços e beijos. Estava comemorada a data e ela, parecendo adivinhar o motivo de tanta agitação, não parava de perambular de um lado a outro em seus passinhos ainda trôpegos, recusando-se a ficar no colo de quem quer que fosse. Dessa forma, a data de falecimento de Ceci, virou por outro lado dia de festa nos próximos anos, em comemoração do aniversário da filha Isabel.

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Gaúcho típico do século XVIII

 

Décio Adams

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