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Fantástico mundo novo! – Capítulo II – Reencontro com Arki.

 

  1. Reencontro com Arki.

 

O dia demorou a passar para Minck. Ajudou a mãe a limpar os espaços ao redor da casa. Varreu os ciscos e folhas mortas caídas, colocando tudo sobre um pequeno monte num canto. Depois de apodrecerem serviriam para fazer crescer alguns temperos que a mãe cultivava em um pequeno canteiro ao lado da casa. Carregou água para limpar o chão de pedras, bastante gastas pelo uso, deixando tudo limpo e brilhando. Nem Muhn sabia exatamente o que dizer da atitude de Minck. As irmãs cochichavam entre elas a respeito, mas nada diziam em voz alta. Apenas davam algumas risadinhas, disfarçando suas atitudes da melhor maneira possível.

Minck ansiava pela chegada do anoitecer. Quando o sol se punha no horizonte, os homens chegaram suados e cansados, porém, satisfeitos com o resultado do dia de trabalho. Tendo sido contratados para chefiar a descarga e carga pelo próprio capitão, estavam encarregados de selecionar os trabalhadores que iriam ajudar. Sabiam que isso lhes traria alguns desgostos, pois os preguiçosos não teriam vez. No máximo, trabalhariam um dia. Se não quisessem entrar no ritmo da equipe, seriam dispensados. Dessa forma, esperavam granjear as boas graças do chefe do porto. Isso lhes daria a posição de serem contratados como chefes de equipe em próximos serviços, pondo para trabalhar quem melhor se empenhasse. Assim teriam uma condição melhor para a própria família. Os dois irmãos mais velhos estavam em idade de casar. Tinham até em mente com quem contrairiam matrimônio, mas até o presente dia, nada podiam fazer, por não dispor de recursos para sustentar um lar. Todos, sem exceção, chegaram e elogiaram a ação de Minck naquela manhã. Logo jantaram, sendo que antes Muhn prestou contas ao marido do dinheiro que mandara. Informou tudo que havia comprado e apresentou o custo total, bem como o que havia sobrado. Ainda havia, graças às suas regateios, sobrado um bom bocado de dinheiro. Teria como completar as refeições nos dias vindouros.

Todos contaram os fatos importantes acontecidos durante o dia, a mendiga que viera pedir comida e depois sumira sem deixar rasto, sendo que ninguém a conhecia, o providencial passeio de Minck à praia vendo o navio se aproximando. Assim avisara o pai e haviam conseguido trabalho para os próximos dias, bem como era provável que seriam, dali para frente, vistos como possíveis chefes de equipe. Sem dúvida uma melhoria sensível no padrão da família. Jantaram com vontade e depois sentaram-se todos em animada conversação. No meio de uma gostosa balbúrdia, ninguém percebeu o sumiço do pequeno Minck. Ele pode subir ao alto do penhasco, em busca de uma piscada do Arki. Esperou, viu a estrela brilhar bem clara no céu, mas nada de piscar. Sentiu em seu íntimo que não iria ver o amigo nessa noite. Ele certamente estava em outra missão e viria noutra ocasião. Seguiria no dia seguinte fazendo como fizera hoje e deixaria nas mãos do Pai do Universo e do Soberano a decisão de como as coisas deveriam andar.

Bem lá no fundo de sua mente, ouviu um ‘muito bem, Minck’ e estacou, pensativo. Quem falara? Não era a voz de Arki. Deveria ser a “fagulha” dando aprovação às suas atitudes daquele dia. Começava a gostar desse jogo. Dispunha sempre de alguém para lhe dizer se seus passos estavam corretos. Isso conferia uma enorme confiança em suas atitudes. Sentou-se pensativo, olhos fixos na estrela, repassando tudo que fizera desde a noite passada. Em tudo ouvia o sinal de aprovação soando no fundo de seu ser. Talvez tivesse cometido pequenos erros, mas isso não deveria ser tão importante, levando em conta que estava dando os primeiros passos nesta caminhada. Na medida que aprendesse os segredos que vislumbrava nas palavras de Arki, a espécie de “eco” que soava em seu cérebro, como aprovando ou confirmando suas decisões, esperava atingir um grau mais elevado de acertos.

Depois de esperar um tempo razoável pelo sinal vindo da estrela, ele murmurou:

– Boa noite, meu amigo Arki. Vou dormir e assim poder ajudar minha família amanhã. Volto outra vez.

Nesse momento viu a estrela dar uma espécie de sorriso. Era como se fosse o rosto do amigo, abrindo aquele sorriso franco e acolhedor. Desceu do penhasco com o coração aos saltos e voltou para casa. Encontrou Muhn a espera como sempre. Recebeu dela um beijo e um abraço. Ele se aconchegou nos braços da mãe e se deixou ninar um pouco. Depois murmurou boa noite e foi dormir. Aos primeiros albores da manhã ele estava em pé, antes dos irmãos. Foi ajudar a mãe a tirar água do poço para deixar a disposição do resto da família. As irmãs que habitualmente faziam esse serviço, apareceram quando estavam terminando. Nesse momento ele sorriu contente e seguiu junto com ela para o interior onde o fogo já crepitava sob a placa de pedra que servia de superfície de apoio para as vasilhas onde eram cozidos os alimentos. A água para fazerem chá estava ficando no ponto e foi então que os homens da casa iniciaram sua romaria de levantar, espreguiçar-se, sair pela porta e pegar água para se lavar. Em alguns minutos estavam todos esperando pelo desjejum que logo ficaria pronto.

Minck ficou sentado um pouco de lado, na expectativa de alguma ordem do pai. Nesse dia e em vários depois, não seria necessário enviar os filhos para procurarem serviço em algum barco para carregar ou descarregar. Tinham serviço por vários dias e, se tudo corresse como esperavam, essas ocasiões se tornariam raras desse dia em diante. Muhn, com ajuda de Song e Xing, serviu uma espécie de bolo feito de farinha de arroz e sementes pequenas, comido a título de pão. Graças ao adiantamento do Capitão, tinham também mel para comer com o bolo. Podiam também adoçar o chá, coisa que há tempo não faziam. A primeira refeição do dia transcorreu com animação de parte de todos os membros da família. Planejavam as ações de trabalho que seriam desenvolvidas naquele dia. Era possível que outro navio estivesse prestes a chegar. Se conseguissem assumir o comando da carga e descarga, teriam trabalho garantido por mais tempo. Sock recomendou a todos agirem com justiça e comedimento em suas atitudes. Ninguém deveria exceder-se em suas ações. Os trabalhadores sob seu comando eram pessoas iguais a eles. Apenas haviam tido sorte de chegar primeiro, ajudar na atracação e amarração do barco. Isto lhes valera que o Capitão os visse com bons olhos e lhes confiasse o trabalho todo.

Se fossem encontrados agindo com soberba e arrogância, certamente ficariam marcados. Em ocasiões futuras seriam preteridos em favor de outros menos orgulhosos. Minck ouvia com atenção e percebeu a voz da “fagulha” aprovando as palavras que ouvia da boca do pai. Seu coração exultou ao constatar que, a julgar pelas sábias palavras que dizia, o pai também era portador de uma “fagulha”. Isso encheu seu pequeno coração de emoção e precisou se conter para não cair em prantos. Já havia terminado seu desjejum. Levou a vasilha para o local em que seria lavado e saiu de mansinho. Queria meditar sobre o que vivera logo cedo, antes de a família partir para o trabalho. Correu e logo subia sorrateiramente no penhasco. Ali ficou por algum tempo meditando sobre tudo e perscrutando o horizonte.

Tinha viva lembrança quando alguns anos antes, ele ainda era bem mais criança, a aldeia havia sido atacada por piratas vindos do mar. Chegaram sem aviso, atacaram os navios, saquearam o que lhes interessava e atearam fogo aos barcos. Depois invadiram a aldeia, onde perpetraram diversas atrocidades. Até matar gente inocente, que tentou lhes barrar o caminho em defesa de seus familiares e raros bens conquistados com sacrifício. Em dado momento viu surgir no horizonte, em deslocamento veloz, um barco que tinha as características que ouvira serem pertencentes a piratas. No primeiro momento seu corpo ficou paralisado. As pernas não queriam obedecer. Mas logo lembrou que poderia avisar a todos e prevenir o ataque. Não seriam tomados de surpresa dessa vez.

O acesso ao porto era feito por um estreito, flanqueado por duas elevações, não muito grandes. Permitiam organizar a defesa e rechaçar a tentativa de invasão, se chegassem a tempo. Ao pensar nisso desceu numa velocidade que nem ele conseguia entender depois e correu ao porto, aproveitando para avisar a todos que encontrava no caminho. Encontrou o pai Sock no comando de um grupo de homens já suados e com o torso nu, carregando fardos de produtos do navio para os depósitos. De longe gritou:

-Pai Sock! Pai Sock!

O pai ao ouvir a voz do filho, com entonação angustiada, parou e foi ao seu encontro. Ao ampará-lo em seus braços fortes, ouviu do pequeno a informação:

– Dois navios piratas estão se aproximando da entrada do porto. Se corrermos podemos impedir que entrem e fazê-los ir embora.

– Onde você os viu?

– Ainda estão longe no horizonte, mas são piratas. Eu os conheço, pois carregam bandeiras com símbolos que pertencem a piratas.

– Vamos providenciar a defesa. Venha comigo.

Sock deixou um dos filhos cuidando do serviço e correu para o setor administrativo do porto. Ali comunicou o que o filho acabava de relatar. O chefe do porto logo quis saber:

– Onde você estava quando os viu?

– Na praia, catando conchas, lá do lado do penhasco.

– Tem certeza de que são piratas? Podem ser navios amigos e não vão gostar de serem recebidos com “honras” por um dispositivo de defesa.

– Eu tenho certeza de que são piratas, – falou Minck.

– Na dúvida, me autorize a levar um grupo de 100 homens para iniciar a defesa até que seja providenciado o reforço posterior.

O capitão do navio que descarregavam estava ali e falou:

– Tem minha autorização. Leve os homens contigo para organizar a defesa. Melhor demorar um dia a mais e depois sair em paz, do que perder tudo e ainda ter o navio incendiado.

Os dois se voltaram e Sock correu para o navio, conclamando os trabalhadores. Logo mais de 200 homens, todos fortes e já suados, estavam a sua volta. Elevando a voz falou:

– Tenho motivos para suspeitar de que estamos para ser atacados por dois navios piratas que se aproximam. Quem tiver coragem e disposição, pegue uma arma que tenha disponível e vamos para a entrada do porto. Ali podemos impedir que se aproximem. Todos gritaram a uma só voz:

– Vamos defender nosso porto, mesmo que seja preciso sacrificar a vida. Basta o que fizeram da outra vez.

– Então vamos pegar as armas.

O capitão havia vindo e falou:

– No porão que vou abrir, vão encontrar espadas, lanças, escudos e machados. Venham e se armem com o que melhor lhes convier.

Todos desceram em ordem, seguindo o Capitão. Este chegou diante de uma porta grande, destrancou com uma chave um grosso ferrolho e abriu a porta. Ali, em perfeita ordem e arrumadas, encontrava-se um grande sortimento de armas para combate. Cada um escolheu o que julgou estar de acordo com suas habilidades, além de um escudo para proteger das armas inimigas. Em pouco tempo estavam diante do barco, embarcando em pequenos barcos que os levariam a força de remos até a entrada. Ao ali chegarem, viram os dois barcos se aproximando pelas laterais, de modo a não serem visíveis do ancoradouro. Só seriam vistos depois de ingressarem na passagem. Os homens, ao comando de Sock e outros mais experimentados em lutas se dispuseram na margem, sob a proteção de pedras, no alto de penhascos existentes bem próximos da entrada. Dali poderiam lançar flechas, lanças e atirar pedras sobre os barcos.

Pelo comportamento dos tripulantes dos dois barcos eles não haviam visto os defensores tomando posições. Avançavam decididamente para a entrada, sendo que um diminuiu, nitidamente esperando que o outro entrasse na frente para seguir logo depois. Sock ordenada que ninguém deveria tomar qualquer iniciativa, antes de os dois barcos estarem dentro da passagem. Nesse momento daria a ordem de ataque. Eles ficariam impedidos de avançar e também de recuar. No ponto onde a passagem começava a se alargar, um grupo de homens de cada lado, estava pronto a rolar enormes pedras que se projetariam para baixo, e rolariam atingindo o barco em seu caminho. Teriam depois o trabalho de remover o entulho, mas bloqueariam o acesso aos assaltantes. Esses por sua vez se veriam obrigados a tentar fugir por terra, onde não estavam habituados a combater.

As ordens foram seguidas. O mesmo que os dois grupos iriam fazer na saída da passagem, outros dois grupos fariam na entrada. Se tivessem um pouco de sorte, conseguiriam destruir os dois barcos assaltantes e conseguiriam afugentar, ou mesmo matar os homens. Dessa forma eles seriam obrigados a se afastar definitivamente daquelas águas. Talvez voltassem um dia, mas levariam um bom tempo até isso acontecer. Tudo aconteceu como planejado. Sem suspeitar de nada, o comandante dos piratas, na proa do primeiro barco, arrostava com ar sobranceiro o porto que já descortinava à frente. Um grande navio em processo de carga ou descarga seria uma presa ótima. Nesse momento soou a voz de Sock, ordenando a ação. Num instante, sem saberem de onde vinha o ataque, os dois barcos foram atingidos por enormes blocos de rocha que lhes destruíram grande parte do casco, fazendo entrar água aos borbotões.

O estrago era irremediável e logo o comandante pirata ordenou:

– Abandonar o navio!

Por todos os lados, homens saltavam para a água, enquanto de cada lado da passagem choviam flechas e pedras menores, lançadas do alto. Muitos deles foram mortos e feridos no processo de desembarque. Em minutos os dois navios estavam indo a pique. Os poucos homens que chegaram à margem, logo se viram cercados por um grande grupo de homens, de espadas e lanças que avançavam sobre eles. O comandante não estava presente. Fora vitimado por uma flecha e algumas pedras, indo parar no fundo da água. Em minutos, cerca de 50 homens, incluindo os dois barcos, se rendiam. Entre os defensores não ocorrera nenhuma baixa. Sequer havia tido oportunidade de usar suas espadas. Alguns ficaram frustrados por isso.

Logo se ouviu a voz forte de Sock dizendo:

– Agradeçam aos deuses por virem em nosso socorro, por meio do meu pequeno filho de 10 anos. Ele viu os barcos no horizonte e correu para nos avisar. Se não fosse ele, estaríamos em apuros nesse momento. Certamente passaríamos por maus momentos.

Todos concordaram com o momentaneamente colocado na posição de líder. Não buscara a liderança, apenas as coisas haviam acontecido de modo a colocá-lo nessa posição. Atribuía ao destino o que estava acontecendo. Novamente era seu pequeno menino, até dois dias atrás, tido pelos irmãos como inútil e imprestável, quem se tornara responsável por essas enormes mudanças na vida de sua família. Nesse momento, mais barcos vinham do porto em socorro dos defensores, mas logo viram que nada mais havia a fazer, além de conduzir os prisioneiros para o porto. Depois decidiriam o que fazer com eles. Mantê-los prisioneiros era contraproducente. Teriam que vigiá-los e ainda dar-lhes de comer. Eles por outro lado nada produziriam de bom.

Sock se viu logo defrontado com esse dilema. Alguns queriam executá-los sumariamente. Afirmavam em sua argumentação a favor dessa medida exatamente a inutilidade desses indivíduos para a comunidade do porto. Certamente não iriam querer trabalhar. Na primeira ocasião tentariam se apoderar de algum navio, assaltar os moradores da aldeia e depois do saque, atear fogo em tudo que pudessem e fugir.

Ouvindo esses argumentos, um dos prisioneiros levantou a voz e falou:

– Praticamente todos nós estamos aqui contra nossa vontade. Fomos tomados como prisioneiros em navios atacados no mar e colocados a serviço do Capitão Scrok. Ele era muito malvado e ameaçava cortar a cabeça de quem não lutasse. Lutávamos para sobreviver.

– Como poderemos ter certeza de que está falando a verdade? – Perguntou Sock.

– Façam um teste. Coloquem correntes e bolas em nossas pernas, colocando-nos a trabalhar. Iremos provar a todos que não somos na realidade piratas. Apenas vítimas do Capitão e seus poucos amigos. Todos eles morreram e agora estão no fundo da água.

– Não vou decidir sozinho. Vamos até o porto e lá vamos resolver essa questão. Há mais gente interessada no resultado. Vamos embarcar nos barcos. Distribuam os prisioneiros dois por barco e os vigiem bem.

– Pode deixar, comandante. – Bradou um dos trabalhadores.

Em pouco os homens de Sock, os prisioneiros e os reforços que haviam vindo seguiam na direção do porto. Ali uma pequena multidão se formara, ao ser visto que os navios atacantes apareceram na entrada, mas em poucos minutos desapareceram na água. Um alarido de vitória se alastrou pela população ao verem os barcos chegando, com os sobreviventes dos navios piratas sob a ameaça das armas. Ao encostarem no cais houve quem quisesse partir para o linchamento dos prisioneiros. A voz de Sock se fez ouvir imediatamente:

– Para trás meus amigos. Eles são prisioneiros e não chegaram a nos fazer nada. Não tivemos nenhum ferido, enquanto eles sofreram baixas significativas. Apenas um pequeno grupo sobreviveu e se rendeu sem lutar. Eles afirmam serem vítimas dos piratas e foram obrigados a lutar com eles, para salvarem a vida. Pedem uma chance para provar o que dizem. Vão trabalhar para nós, enquanto isso, em troca de comida e um canto para dormir.

– E quem garante que não vão fugir. – Protestou um dos presentes.

– Não ficarão livres. Serão acorrentados e vigiados. Depois, se os considerarmos dignos de nosso perdão, serão soltos. Quem concorda levante a mão.

Houve uma grande quantidade de mãos erguidas. O povo da aldeia era pacífico por princípio. Repugnava à maioria, a perspectiva de ver homens indefesos sendo mortos friamente. A morte de um homem em combate, frente a frente, onde lutava pela vida, era cruel e triste, porém não era algo frio e previamente planejado. Sock fez uma avaliação da situação e depois falou:

– Quem não concorda levante a mão agora.

Foram levantadas algumas mãos, mas em número visivelmente menor. A sorte estava lançada. Os prisioneiros ficariam sob a guarda de alguns homens dispostos a vigiá-los. Um metalúrgico faria correntes com argolas para os tornozelos. Eles poderiam caminhar, trabalhar, mas não correr. Dessa forma teriam que permanecer até uma nova decisão no futuro.

Um murmúrio de aprovação percorreu o grupo de prisioneiros, ao verem que haviam sido agraciados com a preservação da vida. Teriam a oportunidade de viver, refazer suas vidas. Alguns mesmo sonhavam em viajar para sua pátria, onde haviam deixado família. Não importava que demorassem a voltar, mas sim que tivessem a chance de voltar. Isso deveriam a posição firme do homem que parecia estar no comando da tropa que os atacara na entrada do porto. Para sua grande graça, o capitão e seus capangas haviam morrido naquela chuva de flechas e pedras que seguiu à queda das enormes pedras.

O chefe do porto e o Capitão do navio vieram falar com Sock e lhe deram os cumprimentos pela brilhante ação que salvara o porto inteiro, o navio e a própria população. A ação fora audaz e eficiente. Foi providenciado um local para colocar os homens presos enquanto fosse providenciado um local mais adequado e definitivo até a solução final. O Capitão ofereceu aos homens que haviam enfrentado os piratas uma refeição farta, regada a bom vinho que mandou buscar no porão do navio. Depois de comerem e beberem bastante, muitos deles deitaram e dormiram à sombra de palmeiras ou dos edifícios do porto. O dia estava perdido. Voltariam ao trabalho na manhã seguinte.

Sock, depois de verificar o bom estado dos prisioneiros, despediu-se do Capitão e do chefe do porto, não sem antes aceitar o posto de chefe geral dos trabalhadores do porto. Era preciso organizar o serviço, para evitar conflitos entre os trabalhadores. Sock se mostrara um eficiente chefe e igualmente um hábil estrategista naquela manhã. Mesmo julgando indevida a honraria, temendo especialmente o ciúme de algum outro que o julgasse indigno de tal posição. Mas isso procuraria compensar com posições justas e bem pensadas. Lembrou do filho Minck que na verdade era responsável por tamanha revolução na vida da família. O pequeno parecia estar iluminado. Alguma coisa acontecera e ele não sabia o que era. Talvez um dia ele lhe contasse como conseguira fazer tudo de maneira tão simples, sem alardes ou espalhafatos.

Chamou os filhos e com eles rumou para casa. Iam também eles um pouco embriagados pelo vinho. Por onde passavam, eram apontados como heróis, especialmente o pai, ficando para os filhos a fama por granjeada pelo progenitor. Um a um eles sentiram um leve toque de orgulho no peito. Não esqueciam, no entanto, que o maior responsável de tudo era o irmão caçula. Ele trouxera a notícia do navio chegando. Hoje avisara da aproximação dos piratas, possibilitando a defesa e literal destruição do grupo malfeitor. Todos perceberam o olhar levemente distante do pai. Parecia pensativo. Nem era perceptível nele qualquer sentimento de orgulho ou vaidade pelo que fizera em defesa do porto e da população. Isso lhes enchia o peito de orgulho, julgado justo, mas não era permitida sua manifestação externa.

Chegaram em casa, encontrando ali Muhn, as irmãs Song e Xing. Olharam por todos os lados, buscando Minck e a mãe falou:

– O Minck foi até a casa dos tios levar uma sesta de alimentos. Já vai voltar. Ele está tão mudado desde anteontem à noite. Nem parece mais o mesmo Minck de sempre.

– O menino está crescendo. Que algo estranho está acontecendo eu concordo. Gostaria de saber o que é. Isso tem sido muito bom para todos nós. É certo que o instrumento de quem está nos beneficiando é o pequeno Minck.

– Que os deuses o protejam. Ele é tão frágil.

– O que lhe falta em força física, parece lhe sobrar em esperteza e perspicácia. Basta ver o que nos proporcionou ontem e o que fez hoje.

Muhn não sabia ainda ao certo o que acontecera naquela manhã e pediu ao marido para lhe contar, pois o pequeno pouco dissera. Sabia apenas do ataque dos piratas. Ao ouvir os detalhes e saber que fora seu pequeno menino que dera oportunidade de organizar a defesa, destruir os navios e prender os homens sobreviventes, Muhn ficou estupefata. Realmente havia algo estranho, diferente nas atitudes do filho. Esperava um dia saber dos detalhes de tudo isso.

Quando Minck voltou, todos o cumprimentaram e ele apenas respondeu:

– Eu vi os barcos, lembrei das histórias que ouvi contarem sobre eles e corri avisar o pai Sock. Ele fez o resto, junto com os homens que trabalham no porto.

– Mas se não fosse seu aviso, nós nada saberíamos. Assim sendo, nem iríamos ver eles chegarem, até ser tarde demais. Não se subestime, meu filho. Você tem sua grande parte no mérito todo.

– Estou satisfeito em ver toda minha família aqui, segura e todos vivos. Isso é o mais importante.

– Eu sinto orgulho de você meu filho, – falou Muhn. – Você além de tudo é humilde, sem vaidade. Você é agora um “pequeno grande homem”.

A família inteira aplaudiu as palavras da mãe. Em pouco as irmãs e a mãe serviram a todos uma rodada de suco das frutas adquiridas naquele dia no mercado. Minck havia passado por lá e vira que uma a partida de frutas frescas havia chegado do interior. Logo ele voltara junto com Xing e haviam comprado duas sacolas cheias de frutas. Todos aprovaram a iniciativa. Nesse momento o filho mais velho falou:

– Nosso pai agora é o chefe geral dos trabalhadores do porto. Poderemos conquistar nossas posições, se soubermos trabalhar com afinco. Isso nos deixa todos em boa situação.

– E devemos boa parte de tudo ao nosso irmão Minck, – disse outro irmão, completando as palavras do mais velho.

A conversação girou em torno dos fatos do dia. Frequentemente havia vizinhos e outros moradores que vinham agradecer a Sock sua atuação na defesa da aldeia. Todos saiam sabendo que o caçula tivera atuação indispensável. Dessa forma a família inteira passou a ser vista com olhos de admiração por parte de todos os habitantes. Apenas uns poucos enciumados, cochichavam nas esquinas, palavras maldosas, procurando desfazer do que era atribuído à família de Sock e Muhn. A maioria, porém, lhes dizia em alto e bom som:

– Vocês falam por pura inveja. São incompetentes para fazer algo importante e ficam falando pelos cantos.

Vendo-se em minoria, acabaram abafando suas falações e tudo aos poucos voltou à rotina. Apenas agora havia nova ordem nos trabalhos do porto. O que ninguém ignorava era a eficiência de Sock na organização e distribuição do trabalho. Era também justo em suas decisões, buscando ser sempre imparcial.

Voltando à noite do ataque, depois do jantar Minck saiu sorrateiro e subiu ao alto do penhasco. Ali não precisou esperar muito para ver a estrelinha piscar. Ele falou:

– Estou à sua espera, meu amigo Arki.

Nisso a estrela piscou rapidamente, dançou e logo o feixe de luz azul partiu. Em alguns segundos Arki apareceu ali ao seu lado. Parecia ter acompanhado tudo lá do espaço. Mal se tornou visível, seu rosto estampou aquele maravilhoso sorriso que inundou o coração de Minck de paz, alegria, euforia, um misto de sentimentos inexplicáveis. Ficaram por instantes se observando mutuamente. Por fim Arki falou:

– Parabéns meu pequeno “grande” amigo. Você conseguiu se superar nesses dois dias. Muito bom o que você fez.

– Você sabe de tudo que eu fiz? Eu estava ansioso por contar a você. Se já sabe de tudo, não tem mais graça contar.

– Eu sei o que você fez, mas quero ouvir de sua própria boca. Ouvir como você viu cada coisa, cada acontecimento. O que sentiu, quais foram as reações das pessoas na sua opinião. Isso só você pode me dizer.

– Bem eu passei a noite sonhando com você. Sonhei que estávamos passeando pelas estrelas. Pela manhã vim aqui e olhei no horizonte onde apareceu um navio grande. Pensei que isso era importante para meu pai saber e pegar serviço de carga/descarga. Isso ajudou minha família, pude dar ajuda aos meus tios e filhos pequenos. Ficou tudo muito melhor lá em casa. Minha mãe parece desconfiar de alguma coisa, mas não perguntou nada. Eu percebi que todos eles têm a “fagulha”, pois eu consigo saber o que querem, sem que eles digam nada. Não leio seus pensamentos, mas, alguma coisa me leva a fazer algo para ajudar. E isso deixou o clima lá em casa muito melhor.

– Muito bem, amigo. Mas o que aconteceu hoje de importante?

– Hoje eu vim de novo aqui e vi dois barcos que logo percebi eram piratas. Estavam navegando direto para o porto. Corri avisar o pai que está chefiando os homens de carga e descarga. Ele falou com o Capitão e o Chefe do porto, que liberaram ele para ir defender o porto lá no estreito de entrada. Conseguiram destruir os barcos e prender os homens que não morreram afogados ou flechados no desembarque. Estão presos lá no porto e vão trabalhar para provar que são honestos. Estavam no navio pirata obrigados. Lutavam para sobreviver.

– Estou vendo que você virou um pequeno herói na aldeia. Seu pai se tornou o líder dos trabalhadores e sua família ficou em condições bem melhores. Seu pai como está se portando?

– Eu ouvi ele defender os homens presos e não deixou ninguém maltratar nenhum deles.

– Seu pai é um homem bom. E ele também tem a fagulha, segundo sua opinião?

– Se ele tem a fagulha? Como tem, amigo. Ele também não sabe o que é, mas sabe que alguma coisa aconteceu comigo.

– Quanto progresso, meu amigo. É hora de aprender mais algumas coisas.

– Eu quero aprender tudo que você puder me ensinar.

– Só não ter pressa. Vamos começar por uma coisa bem básica e simples. Essa “fagulha” na cabeça de cada ser humano depois de mais ou menos cinco anos, faz todos buscarem Deus, como que por instinto. Isso leva alguns a prestarem culto às estrelas, à lua, ao sol, à alguma imagem feita de pedra, ouro ou outro material. Alguns grupos humanos adoram e deificam animais selvagens ou domésticos. Tudo isso é resultado da busca do homem pela sua origem. Deus entende tudo isso e aceita, mesmo que o culto esteja sendo dirigido à uma de suas criaturas. Aos poucos, no decorrer do tempo, todos irão alcançar novas etapas de evolução. Nessa evolução aprenderão lentamente quem é Deus, onde ele mora, como Ele é, qual é a sua vontade. Todos os seres humanos que aceitam buscar Deus, um dia, depois de muitas etapas, vão chegar no Paraíso.

– O Paraíso, como é? Você sabe?

– Para te dizer a verdade bem simples, eu também vou evoluir e espero chegar ao Paraíso. Sei apenas que é um lugar maravilhoso. Vi algumas imagens mostrando o lugar fantástico que é a morada do Pai do Universo. Ele é pura misericórdia, amor, carinho e desvelo pelas suas criaturas. Ele fica triste quando seus filhos se afastam do caminho que ele lhes indica por meio da fagulha. Não posso afirmar que ele sofre, pois é Deus Todo Poderoso. Mas que ele fica triste, tenho certeza que sim.

– Por que ele deixa algumas pessoas sofrerem tanto, se ama a todos por igual?

– O sofrimento não é culpa de Deus. É culpa dos homens que se desviaram do caminho e praticam as maldades, que fazem os outros sofrer. Alguns tipos de sofrimento são parte de falhas no projeto do corpo físico do ser humano. Quando isso acontece, o espírito que mora nesse corpo, sobre bastante, mas também aprende muito, se souber aceitar o sofrimento como uma etapa de sua evolução.

– Então o sofrimento é consequência da vida. Faz parte de uma das etapas que temos que passar, antes de alcançar o Paraíso?

– Bem isso, amigo. Você parece que ficou muito contente quando sua mãe deu uma refeição a uma mendiga que veio pedir comida. Por que ela estava passando fome, na tua opinião?

– Não tinha família, ou não encontrou trabalho para ganhar sua comida. Fiquei com dó dela e quando a mãe Muhn deu uma refeição para ela, meu coração se iluminou.

– Pois se você ficou contente, imagine a alegria do Soberano, e também do Pai do Universo com esses gestos. Eles que são a misericórdia, o amor e carinho levados ao máximo, simplesmente ficam exultantes.

– Então minha mãe está caminhando no caminho certo. Está fazendo o que o Deus do Universo, o Pai e o Soberano querem?

– Pode apostar que sim. Ela está ocupando um lugar especial na escalada em busca do Paraíso.

– Isso me deixa contente. Não iria gostar de chegar no Paraíso e minha mãe se perder no caminho.

– Ela não irá se perder. Talvez chegue um pouco antes ou mesmo depois de você, mas vai chegar com certeza.

– Eu vou poder ver, falar com o Soberano, aqui do Universo?

– Ainda não. Ele no momento está encarnado em um outro planeta, em auto outorga na forma humana daquele planeta. Quando terminar a experiência, ele desencarna e volta para a capital do Universo. Ele é conhecido pelo nome de Mikael, mas como homem ele assume um nome escolhido dentro da forma de falar dos homens do planeta.

– Isso quer dizer que um dia ele pode vir parar aqui na Terra?

– É possível. Mas ele tem muitos planetas para fazer sua outorga e precisa fazer isso sete vezes. Depois se torna o Soberano definitivo do seu Universo. Mas é certo que algum outro espírito celeste venha se encarnar aqui no seu planeta.

– E ele vai viver igual a gente?

– Vai viver uma vida de homem, como qualquer um. Vai trabalhar, sofrer, suportar a dor, calor, frio, sentir fome e sede. Nada diferente da vida de um humano. Isso serve para ele experienciar a vida dos seres evolutivos.

– Acho que agora complicou. Não entendi essa parte de auto outorga do Soberano. Como o Deus que criou tudo, vai se tornar igual a um ser humano? Sei que ele é poderoso, mas isso fica complicado de entender.

– De fato, para entender com perfeição, seria preciso viver a vida dele, o que não é possível. Não existem palavras para descrever isso detalhadamente. Mas acontece sete vezes até a última de definitiva outorga. Depois dessa ele assume seu lugar definitivo no seu Universo. Enquanto ele vive como humano, um regente governa o Universo no lugar dele. Periodicamente eles conversam e resolvem algumas questões, mas não sei explicar como isso acontece.

– Eu estou cansado. Acho que devo ir para casa dormir. Você vem outra vez?

– Vou voltar sempre, até que você fique pronto para desempenhar sua missão. Lembra, você tem uma missão.

– Antes disso vai me levar passear no seu transportador pelas estrelas. Não esqueça.

– Eu não esqueço e vou cumprir o que prometi. Você está fazendo tudo para merecer isso. Você está me surpreendendo com a rapidez de seu aprendizado.

– Eu acho que sou lerdo para aprender.

– Em dois dias já ultrapassou várias etapas. Isso é raro em casos como esse.

– Você já fez o mesmo outras vezes?

– Não bem assim, mas parecido. Cada caso é um caso e tem suas características próprias. Mas você está se mostrando um campeão. Está na hora de voltar mesmo. O Soberano está me chamando e não posso deixa-lo esperando.

– Mas você disse que ele está vivendo como humano em um planeta. Como ele faz para chamar você?

– Na verdade é o regente que está substituindo o Soberano, mas é como se fosse ele próprio. Adeus por hoje, amigo. Volto daqui a dois dias, se tudo estiver bem. E você continue a levar a vida como fez até agora.

– Adeus amigo. Vou esperar daqui a dois dias. Espero ter uma porção de coisas novas para contar e aprender outras tantas.

O raio azul encolheu em instantes e sumiu. Logo a estrela se alongou, como que fazendo o formato de uma boca, dando um sorriso discreto.

Minck desceu do penhasco e foi para casa. A mãe estava a espera e o olhou de forma inquisidora. Ele sem titubear falou:

– Eu estava no penhasco, olhando as estrelas. Elas são tão bonitas, mãe. Agora vou dormir. Estou cansado para valer.

A mãe deu-lhe um beijo e o abraçou carinhosamente. Ele retribuiu o beijo e abraço. Logo foi para seu canto e deitou. Os irmãos já estavam dormindo a sono solto.

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