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Na senda dos monges! – Capítulo X , O fim do império do Brasil.

  1. O fim do império do Brasil.

proclamação da república.
Proclamação da República.

Em 1888, quando estava retornando da segunda viagem da temporada, chegou a notícia da abolição definitiva da escravidão no Brasil. Em 13 de maio a Princesa Isabel, filha e regente em lugar do pai D. Pedro II, que estava em uma de suas muitas viagens ao exterior, promulgou a Lei Áurea. Ficava definitivamente extinta a escravidão no Brasil.  Não sendo proprietária de escravos, essa lei em nada afetou a vida da família Batista. Antônio e Isabelita haviam vindo morar na propriedade, enquanto o tio João ocupava o posto de administrador na Estância Ribas.

Desde o final da Guerra do Paraguai, os ideais republicanos vinham ganhando impulso. Em 1870, logo ao findar da guerra, foi lançado o Manifesto Republicano. Em todas as capitais e cidades de maior importância foram fundados clubes republicanos, junto com jornais que tinham a mesma orientação ideológica. Os militares, no contato com os colegas de Uruguai e Argentina, onde o governo era republicano, sentiam-se desprestigiados pelo governo imperial. Em todo período, jamais um militar ocupou o cargo de Ministro da Guerra, ficando portanto sempre subordinados a ministros civis. D. Pedro II demonstrava uma pequena predileção pela marinha, deixando os militares numa posição de inferioridade.

A gradual redução do número de escravos, obrigou os fazendeiros a buscar mão de obra em outras áreas, tornando o custo da produção mais alto. O comércio de mulas na feira de Sorocaba vinha decaindo anualmente, com a construção de diversas ferrovias. Dessa maneira os tropeiros viram reduzido seu mercado e sentiram a necessidade de mudar de atividade. No dia 14 de novembro de 1889, foi assinado o decreto, dando ao Engenheiro Teixeira Soares a concessão para construção e exploração por um longo período de uma ferrovia, começando em Itararé – SP e terminando em Santa Maria da Boca do Monte, no RS. O próprio Teixeira Soares, responsável pela construção na década anterior da ferrovia Paranaguá/Curitiba, fizera anos antes o levantamento e um traçado prévio da nova ferrovia a ser construída. Com isso o trabalho dos tropeiros ficaria definitivamente substituído.

Não bastassem todos os problemas enfrentados pelo governo imperial, ainda havia o fato de um isolamento político em relação ao resto da América do Sul, por ser a única monarquia do continente. A isso se tinha que somar uma lenta rebeldia dos prelados católicos contra a instituição do padroado, herdado de Portugal. O catolicismo era a religião oficial e assim os padres, seus superiores os bispos, eram em verdade assalariados do governo. Dessa forma, para que uma bula papal tivesse vigor no império, era essencial que passasse pelo aval do monarca. A lenta infiltração da maçonaria nas fileiras políticas, levou dois bispos a se rebelar, pedindo ao papa a excomunhão dos membros das lojas maçônicas. O resultado foi uma disputa, conhecida como questão religiosa pois o alto escalão do governo era todo composto por maçons.

O último sustentáculo do império ruiu com a abolição da escravatura. Os fazendeiros, revoltados com o fato de não receberem uma indenização equivalente ao custo dos escravos libertados, tornaram-se republicanos de última hora. Um boato foi lançado sobre uma ordem de prisão contra o Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, convencendo-o a aceitar colocar-se ao lado dos republicanos. Mesmo gravemente doente, saiu de madrugada, próximo ao raiar do dia, dirigiu-se até a Praça da Aclamação. Ali estava aquartelada uma unidade militar e lhe foi oferecido um cavalo. Ele montou, retirou o chapéu e exclamou:

– Viva a República.

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Imagem comemorativa da proclamação da república.

Desdeu do cavalo e voltou para casa, onde ficou em sua cama da qual saíra contrariando ordens médicas. Em poucas horas formou-se um governo provisório, tendo como presidente o próprio Marechal.  Mal. Floriano Peixoto ficou como vice, os ministros Benjamim Constant, Quintino Bocaiuva, Rui Barbosa, Campos Sales, Aristides Lobo, Demétrio ribeiro e o almirante Eduardo Wandenkolk, todos eles integrantes da maçonaria.

Pouco antes de iniciar o retorno de Sorocaba, João Maria foi surpreendido pela notícia da proclamação da república, sendo o Imperador enviado para a Europa, longe do país que tanto amava desde criança. Era sua pátria. Os pais eram portugueses, mas ele nascera brasileiro e vivera a vida inteira como tal. Sua maior mágoa foi sem dúvida a privação do direito de viver em sua terra natal.

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Assinatura da primeira constituição repúblicana.

A República surgiu prometendo muitas mudanças, mas o começo foi bastante conturbado. Não existia uniformidade de ideias. Em cada província, agora chamada Estado, havia formas de pensar a organização do governo com características diferentes. Faltavam elementos capazes de tomar as rédeas do poder e administrar o imenso país. Até ali, quem ocupava os cargos administrativos era monarquista e não era tido como alguém de confiança. Sendo militar, pouco afeito à vida civil e suas peculiaridades, além de doente, Deodoro da Fonseca, primeiro presidente, não resistiu muito. Menos de um ano depois da promulgação da primeira constituição republicana e realização da eleição, ele renunciou. Em seu lugar tomou posse Mal. Floriano Peixoto, mesmo contrariando as disposições constitucionais. Implantou uma ditadura militar, dissolveu o congresso e ficou conhecido como o Marechal de Ferro, tamanha era sua rigidez de conduta e intransigência.

As dissidências frequentes levaram a várias trocas de ministérios, algumas revoltas. Outro problema sério foi a consolidação dos governos estaduais, sendo que em vários deles ocorreu uma sucessão de governantes em regime de alta rotatividade. No Rio Grande do Sul, Júlio Prates de Castilho, unido com Pinheiro Machado e Assis Brasil, formaram o Partido Republicano Rio-Grandense.  Na oposição estava o Partido Federalista do Rio Grande do Sul, tendo no comando Gaspar da Silveira Martins, monarquista liberal. Júlio de Castilhos conseguiu aprovar uma constituição estadual, redigida por ele mesmo, sendo em seguida eleito presidente do estado.

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Começo do movimento federalista.

  Em 1893, eclodiu a Revolta Federalista. De um lado estavam os revoltados cognominados maragatos, usando como identificação os lenços brancos amarrados ao pescoço. Também eram chamados de gasparistas por serem aliados de Gaspar da Silveira Martins. Defendiam a implantação de um governo parlamentarista, nos moldes do segundo império, dando maior autonomia aos governos estaduais.  Os adeptos de Júlio de Castilho, chamados castilhistas e aliados ao governo central, eram chamados também de pica-paus ou ximangos e se identificavam pelo uso de lenços vermelhos.

Boa parte dos caudilhos do estado fazia parte do grupo dos federalistas e tinham propriedades no território do Uruguai, usando esse fato para arregimentar homens e armas longe dos olhos dos castilhistas. Um dos primeiros combates fortes ficou conhecido como cerco de Bagé. O caudilho Gumercindo Saraiva, comandando cerca de três mil homens, todos excelentes combatentes à cabalo, hábeis no manejo da lança, espada e facão, deslocou-se para Dom Pedrito. Dali realizava ataques relâmpagos às posições castilhistas, causando instabilidade entre as tropas leais ao governo.

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Estado maior de Zeca Neto

Alguns meses antes, haviam surgido rumores na região de Passo Fundo e Soledade sobre a reaparição do Santo Monge. O que era um pouco difícil de acreditar, pois o homem, se ainda estivesse vivo, deveria estar beirando 90 a 100 anos de idade. As descrições e maneiras de agir eram bastante semelhantes ao que os mais idosos, contemporâneos de João Maria no Botucaraí e Campestre, costumavam contar. Em pouco tempo tornou-se voz corrente entre o povo mais humilde a volta do monge. Ele, segundo contavam, prometera voltar, apenas ninguém sabia quando. Com o encerramento das tropeadas para Sorocaba, a atividade da propriedade da família Batista sofreu uma queda significativa. As mulas eram somente para uso próprio e agora predominava o gado de corte.

Quando Gumercindo Saraiva passou nas proximidades com sua tropa, João Maria teve um surto de patriotismo às avessas. O governo republicano se instalara prometendo melhorar tudo e até o momento nada disso acontecera. Os federalistas tinham razão. Certo que não haveria mais como restaurar a monarquia, trazendo a família de D. Pedro de volta, mas a forma de governar poderia ser semelhante. Os estados tendo maios liberdade de ação, poderiam estimular o progresso em suas regiões. De um momento para outro, selou seu melhor cavalo, levou consigo um velho fuzil, uma espada que pertencera a Antônio na Guerra do Paraguai e se apresentou ao comandante.

Foto antiga dos combatentes do Cerco da Lapa, 1894.
Defensores da Lapa – PR.

Não tardou e estava engajado na tropa, especialmente pelo fato de saber ler e escrever, o que era coisa rara na época. Ficaria sob as ordens praticamente diretas do comandante. Ficou encarregado de redigir os documentos, correspondências que fosse necessário enviar. Recebeu o posto de tenente, para dar maior respeitabilidade perante os demais homens. Dessa forma, os meses finais de 1893 encontraram João Maria, a caminho do Paraná. Em diversas ocasiões encontraram tropas pica-paus e se bateram em renhidos entreveros. O terreno não favorecia nem a uns nem outros, todavia os maragatos estavam mais habituados ao combate a cavalo, encontrando pela frente, em geral, tropas de infantaria.

Maragatos em Urussanga - SC
Maragatos em Urussanga – SC

De combate em combate, chegaram em princípios de janeiro às portas da antiga Vila do Príncipe, agora denominada Lapa. Ali encontraram renhida defesa das posições pelas forças comandadas pelo General Carneiro. Eram 639 militares além de um pequeno número de voluntários. Defenderam por 26 dias a posição, sem ceder, contra um contingente de aproximadamente 3000 combatentes. A feroz resistência deu ao governo de Floriano Peixoto tempo para organizar o contra-ataque, sendo que, ao final o comandante Coronel Carneiro tombou ferido e morreu sem saber que havia sido promovido a General por ato de bravura. Os sitiantes tomaram a Lapa e avançaram contra Curitiba, que também foi tomada, porém por pouco tempo.

Coronel Gomes Carneiro
Coronel Gomes Carneiro, defensor da Lapa.

Impedidos de prosseguir, e desgastados pelo longo sítio mantido antes de tomar a Lapa, Gumercindo bateu em retirada. Nessa retirada, muitos homens se perderam, foram perseguidos e mortos. Gumercindo retornou ao Rio Grande do Sul, onde continuou a luta. Na véspera de um ataque, no dia 20/08/1894, foi alvejado à traição e morreu.

Durante a retirada das terras de Curitiba, João Maria seguido por um pequeno grupo de homens, pegou um caminho, imaginando encurtar a distância e se perderam. Continuaram em frente, esperando encontrar Gumercindo mas adiante, mas foram surpreendidos por um piquete de cavalaria e perseguidos. Com pouca munição e bastante cansados, foram tombando um a um e João Maria, vendo que restava somente ele, conseguiu alcançar um capão de mato onde pretendia se esconder ou ao menos despistar os perseguidores. Pouco antes de conseguir ficar oculto, um tiro o atingiu no quadril, do lado direito. Reparou que não fora um ferimento grave, mas precisaria encontrar ajuda para pensar o ferimento.

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Ruina da Lapa, restante do Cerco durante revolução federalista.

Por enquanto o mais importante era conseguir colocar entre ele e seus perseguidores a maior distância possível. Caminhou vagarosamente pelo mato, sem fazer ruído e se escondeu no fundo de um valo, sob uma pedra que se projetava para cima. Os perseguidores passaram a poucos passos sem perceber sua presença, pois o cavalo, que ele mesmo domara, sabia estarem em perigo. Manteve-se imóvel sem fazer o menor ruído. Ouviu os homens falando entre eles, retornaram por outro lado, um pouco mais longe de onde estava e no final desistiram, dizendo:

– Um deles escapar não é problema. Pegamos os outros todos.

– Mas eu sei que acertei ele na hora que entrou no mato. Ele não está longe.

– Mas procuramos por tudo e nada. Deve ter parte com o demo.

– Vai ver que tem mesmo. Se não morreu agora, vai morrer no caminho que ainda tem pela frente. Por esses sertões, onde vai conseguir ajuda?

Era realmente uma questão séria. Ferido, sozinho, distante de qualquer ponto de referência ou gente conhecida, precisaria poupar suas energias ao máximo para resistir à caminhada. Outra saída seria encontrar um caboclo morador desse sertão e pedir ajuda. Eles habitualmente conhecem bastante o uso de ervas para curar feridas, seria uma coisa providencial se encontrasse alguém. Lembrou do tempo que tropeava e lhe veio à memória a existência, alguns quilômetros para frente, de uma pousada. Talvez ainda houvesse quem ali vivesse, mesmo com o fim das tropeadas.

Começou a se mover, sentindo um pouco de dor no ferimento. Um pouco adiante, parou na beira de um riacho cristalino para beber água e dar de beber ao animal. Sentou-se à sombra de um arbusto e removeu as roupas no local ferido. A bala entrara pelas costas e não saíra. Isso era ruim. Se tivesse saído, a ferida teria menos chances de arruinar do que com ela ali, alojada. O corpo reage aos resíduos de pólvora provocando inflamação e isso poderia trazer complicações sérias. Arrumou as roupas de modo a não cobrir o ferimento e amarrou um lenço que sobrara no alforje em torno da cintura para proteger o lugar.

Tentou montar. O cavalo se afastara alguns metros e pastara o capim bem viçoso que ali crescia. Viu ali perto, na vegetação que crescia ao longo do pequeno curso d’água um pé de goiaba e havia frutos maduros. Lembrou que estava a horas sem comer e foi até lá, pegando uma porção deles para comer na hora e outros para ter o que ingerir no caminho. O cavalo parecia agradecer pelo capim que lhe era disponibilizado. Estavam agora sozinhos. O grosso da tropa certamente estava longe e os companheiros que o haviam seguido ficaram tombados. Esperava que os inimigos se dignassem a dar sepultura a eles.

O sol diminuiu a intensidade e ele começou a sua caminhada. Deixou o cavalo andar a passo, pois assim sentia menos a ferida. Os olhos estavam fixos à frente, buscando um lugar onde pudesse encontrar abrigo até se recuperar. Talvez um bugre ou caboclo que topasse retirar a bala de seu quadril e assim apressar a cicatrização. Depois teria tempo para retornar ao sul. Nesse momento lhe ocorreu que, os irmãos e demais familiares, ao saber do retorno de Gumercindo, sem que ele estivesse com eles, iriam supor que haveria morrido. Se não se cuidasse era o que aconteceria em poucos dias.

Caminhou por aquele dia, dormiu em um abrigo abandonado na beira da trilha e seguiu caminho na manhã seguinte. Por horas não encontrou vivalma. Quando a noite se aproximava, viu ao longe uma fumacinha subindo. Parecia ser uma chaminé, ou uma fogueira. Tentaria chegar perto, sem levantar suspeitas. As roupas que o identificavam como maragato haviam ficado para trás, ou estavam tão danificadas que estavam irreconhecíveis. Em meia hora sentiu o cheiro da fumaça e carne sendo assada. Nessa hora também sentiu a primeira fisgada na ferida, dando sinal de que ela estava infeccionando. Continuou caminhando, sentindo os sinais da febre aparecer. O rosto ficou afogueado, um suor gelado escorreu pela espinha e temeu pela sua vida.

Se o morador ou autor da fogueira não lhe pudesse fornecer ajuda, estaria em maus lençóis. Cavalgou mais alguns minutos e deparou com uma cabana rústica, de onde se elevava por uma chaminé de pedras, uma pequena coluna de fumaça. Parou a alguns metros da porta e chamou:

– Ó de casa! Ó de casa!

Aguardou um instante e na porta iluminada pelos últimos raios solares, apareceu uma figura de mulher. Era jovem, tinha traços indígenas, mas as características não eram totalmente nativas. Parecia uma mestiça. O que estaria fazendo essa mulher ali no meio daquele sertão, aparentemente sozinha?

O primeiro gesto que ela teve foi de empunhar uma lança bem grande, disposta a se defender. Rapidamente ele levantou as mãos e falou:

– Eu estou ferido. Venho em paz. Estou precisando de ajuda.

– Quem é filha?

– Um homem e está ferido, diz ele.

Um ruído se fez ouvir, a lança permaneceu levantada, pronta para atacar e depois um homem idoso, deveria ser septuagenário ou algo assim, emergiu da cabana. Era na verdade o avô da jovem. Haviam sido atacados por posseiros em busca de erva mate, pinhão e os pais haviam sido mortos. Conseguira se esconder com o avô e agora estavam ali, sobrevivendo com o que ela conseguia caçar, pescar e colher de frutas, além dos pinhões na época apropriada. O pobre homem não poderia mais ir em busca do alimento, embora parecesse bem forte. O corpo estava encurvado pelo peso dos anos, mas o olhar permanecia vivo, perscrutador.

Depois de entregar a ela suas armas e se apresentar de mãos limpas, permitiram que se aproximasse da cabana. O ferimento foi lavado com água trazida de uma fonte próxima. A temperatura baixa do líquido, ajudou a refrescar sua pele, baixando a febre. O olhar do idoso logo detectou o que acontecia:

– Bala ficou em ferida! Pólvora fazer corpo criar inflamação. Amanhã precisa tirar bala ou homem vai morrer.

Ao ouvir falar em morte, João Maria sentiu um calafrio. Seria sua sina morrer ali, no meio do nada, perdido em um recanto do sertão? Sobre um fogo um caldeirão fervia um cozido de carne. A jovem conseguira caçar um cateto e parte da carne estava sendo cozida. O restante estava acondicionado para conservar até o dia seguinte, com sal e ervas aromáticas colhidas na floresta. O estado febril não deixava João Maria sentir fome, mas a jovem insistiu em faze-lo ingerir um pouco de caldo. No começo pareceu não ter sabor, mas aos poucos percebeu o efeito das ervas usadas para temperar e uma sensação confortável invadiu suas entranhas. Logo caiu em um sono profundo, deitado sobre uma esteira colocada num canto da cabana.

Durante a madrugada a jovem por diversas vezes molhara suas faces e membros para baixar a febre. Por ordem do avô preparara uma infusão de uma mistura de raízes maceradas. Depois de algumas horas era hora de beber o líquido. O gosto era forte e amargo, mas decidiu confiar na sabedoria do velho indígena. Ele mesmo estava vigilante, observando as reações do doente. Sob os cuidados dos dois desconhecidos o dia amanheceu e a febre havia tido uma ligeira melhora. Comeu alguns pinhões e frutos silvestres, seguidos de nova porção da infusão das raízes amargas. O idoso levantou, também comeu um pouco, bebeu água trazida pela neta da fonte.

Pegou uma pequena faca e a amolou cuidadosamente com uma pedra. João Maria lançou um olhar receoso para aquela lâmina, imaginando qual seria a sua finalidade. Pouco depois, o idoso mandou colocar água sobre o fogo para ferver. Depois falou:

– Vou preparar um chá para lavar ferida depois que tirar bala. Vai doer um pouco, mas depois melhora. Pior seria se fosse ferida de flecha com veneno. Se veneno ser forte e pegar no lugar certo morre logo. Não tem tempo de salvar.

– O senhor vai tirar a bala? Vai ter que cortar?

– Depender. Se bala está muito fundo, precisar abrir um pouco para conseguir tirar. Você homem valente, guerreiro forte, não vai chorar como mulherzinha.

Diante dessa afirmação, João Maria engoliu o medo, morderia os lábios, a língua e aguentaria o que fosse preciso para tentar sobreviver.

Quando a água ficou quente, um punhado de ervas e raízes foi colocado em infusão enquanto a água esfriava. Quando o líquido ficou bem escuro com a absorção das substâncias das plantas, o velho começou a coar o líquido, vertendo-o em uma cabaça bastante grande. A medida que a água na vasilha ia sendo transferida para a cabaça, o momento crucial se aproximava. Terminada a operação, o velho testou o fio da faca, passou-o em uma raiz e depois o molhou no líquido.

– Vamos tirar bala! Ficar virado de lado para poder ver bem ferida.

João Maria virou-se ficando na posição mais confortável possível e se preparou para o próximo passo. Em segundos sua sorte seria decidida. Sua recuperação dependia das mãos desse homem idoso. Pelo rosto do homem percebeu que a ferida estava com aspecto bem feio. A bala parecia ser do tipo que fragmenta e havia rasgado a pele onde penetrara. Um pouco da água, ainda morna, foi despejada sobre a área ferida e aos poucos sentiu um leve amortecimento. Sentiu as mãos apalpando a região e logo uma dor mais forte assinalou o momento em que os dedos pressionaram o local onde o projétil estava alojado.

– Estar bem fundo. Mim precisar cortar um pouco para conseguir tirar. Vamos despejar mais um pouco de água e fazer tomar um pouco para diminuir dor.

Uma cuia com um pouco do chá foi aproximada de sua boca, e sentiu a boca ficar amortecida na medida em que ingeria o líquido. Logo um torpor se espalhou pelo corpo e ficou mais relaxado. Não imaginava o que havia ingerido, mas parecia uma benção, pois aparentava que a dor sumia aos poucos. Depois de esperar por alguns minutos, o velho pegou de sua faca, fez uma incisão em cruz sobre o ferimento, aumentando a área de abertura. Depois, com o dedo ágil procurou até localizar o projétil. Uma leve fisgada fez João gemer de dor, mas ouviu a risada do velho.

– Este ser bala suja. Ter pontas para machucar mais, fazer estrago maior. Dentro tem tipo de veneno. Vamos lutar para vencer veneno que branco usou. Mim não saber qual é, mas conhecer muitas ervas para curar venenos.

A palavra veneno e bala com pontas fez João lembrar dos projéteis que ao atingirem obstáculos se fragmentam, transformando-se em estilhaços de aço que estraçalham os tecidos. A possibilidade de terem usado projéteis envenenados lhe fez perpassar um calafrio pelo corpo. Se fosse um veneno conhecido pelo velho índio ele teria melhores condições de curar a ferida. Não sabendo do que se tratava, restava tentar tudo que sabia e torcer para que não fosse um veneno letal. Como já estava ferido a praticamente dois dias, não deveria ser algo tão terrível, mas poderia ser uma doença difícil de curar.

Agora uma compressa de folhas amassadas com raízes foi colocada sobre o ferimento. Em alguns minutos ele dormiu profundamente. Enquanto isso a jovem saiu para procurar frutas frescas e mais alguma caça, talvez um peixe no rio distante um quilômetro da cabana.  O velho acendeu um cachimbo feito com bambu e ficou fumando lentamente enquanto observava o paciente. Depois de algum tempo a febre retornou e João começou a delirar. Havia água fria numa cabaça grande e o velho começou a molhar o rosto e os braços do doente. Com muito esforço, a temperatura baixou um pouco.

Ao entardecer a jovem voltou trazendo um par de belos peixes que conseguira fisgar com sua lança especial e uma porção de frutas colhidas na mata. João estava acordado e recebeu de suas mãos pedaços de fruta.

– Precisa comer para vencer veneno. Se não comer ficar fraco e morrer – disse ela suavemente.

Como poderia uma criatura tão jovem e suave na aparência, dizer essas coisas com tamanha serenidade? Devia ser a forma de vida que levava desde o nascimento. Comeu um pouco e voltou a dormir. Antes de se prepararem para passar a noite, o emplastro foi renovado, fizeram-no beber mais uma porção do chá anestesiante, depois de tomar um pouco de caldo com farinha de pinhão. Alguns pedacinhos de carne desmanchando de tanto cozinhar vieram misturados e ele apreciou a mistura. Depois que bebeu o chá não tardou a dormir. Acordou a certa altura da madrugada com a jovem aplicando água fria em sua testa e braços. A febre estava alta novamente.

Amanheceu sentindo-se enfraquecido. Parecia ter enfrentado uma jornada de vários dias de caminhada ininterrupta. Os braços pareciam de chumbo, as pernas pareciam pedras. O velho refez o emplastro, trocando uma parte dos ingredientes, pois percebera que o efeito não havia sido o esperado. Assim passaram-se vários dias, tantos que João perdeu a conta. Não saberia mais dizer quanto tempo ficara deitado ali, até que um dia viu no rosto do velho um sorriso de satisfação. Era sinal de que a crise havia sido superada.

– Homem branco vencer veneno. Agora precisa se alimentar bem para ganhar força.

– Tem certeza que o perigo passou?

– Sim. Já começar a sarar. Em uma semana estar fechada ferida e ficar só cicatriz.

– Se não fossem vocês dois, eu a essa hora teria virado comida de urubu ou bichos do mato.

– Você ser forte. Esse ser grande sorte. Índio velho não conhecer veneno usado em bala.

– Mas conseguiu me curar. O senhor é um grande curandeiro.

– Lua Serena ter mérito. Ela caçar e pescar para alimentar todos nós.

– Onde está ela?

– Logo voltar. Foi caçar e buscar frutas. Um pouco de pinhão, palmito.

– Nunca vou poder agradecer a vocês o suficiente pelo que fizeram por mim.

– Basta nunca atacar meu povo, defender famílias índios contra brancos malvados.

– Isso é uma barbaridade que eu nunca pratiquei. Fico com nojo quando ouço contarem essas coisas feitas por gente de minha raça.

– Agora descansar um pouco. Já falou bastante. Depois precisa comer bastante para ganhar força.

Voltou-se para o lado e em segundos estava dormindo serenamente. Pela primeira vez dormia sem o fantasma da febre pairando sobre seu corpo. A crise estava superada e bastaria agora refazer as forças e poder voltar para casa. A jovem índia Lua Serena voltou pouco depois e começou a preparar os alimentos que conseguira trazer. Recebeu com satisfação a informação de que o paciente finalmente vencera a crise que, por várias vezes parecia ser insuperável. Aproximou-se dele e surpreendeu um sorriso amplo no rosto do homem que conhecera vivendo um momento crucial da vida. Um ferimento à bala, arruinara e por pouco não lhe levava a vida. Vira-se sentindo um aperto no coração ao pensar na possibilidade da morte do homem.

Não sabia o que isso significava, mas desconfiava que estava ficando inclinada pelo homem branco. Não sabia o que o avô diria se ficasse sabendo disso. Eram os últimos sobreviventes da sua tribo e não teria homem de sua raça para dar continuidade ao ciclo da vida. Sabia que isso fazia parte da vida das pessoas quando atingem a idade adulta. Terem filhos e cria-los para ficarem em seu lugar quando deixassem essa vida. Também não sabia o que ele diria sobre esse assunto. Talvez nem quisesse saber dela, por ser descendente de indígenas. A mãe era mestiça, filha de branco com índia e isso a tornava parcialmente branca. Não era totalmente índia.

Preparou a comida e ficou contente ao ver o paciente tentar sentar-se para comer. Estava fraco, mas com a ajuda que ela lhe deu, conseguiu sentar-se e comer normalmente pela primeira vez em quase um mês, desde que ali chegara montado em seu cavalo. O animal estava sendo bem cuidado e alimentado nos capinzais existentes nas proximidades. Estava liso e manso. Chegara a montar nele e dar algumas voltas pela redondeza. Assim conseguia ir mais rapidamente até os locais de pesca e coleta de frutos para alimentar aos três.

Durante a refeição João lembrou do animal, ao ouvir seu ruído do lado de fora. Ao ouvir prestou atenção e ouviu:

– Seu cavalo estar aí fora. Bem forte e gordo. Andei nele para ir pescar e caçar. Também colher pinhão e frutas.

– Eu pensei que ele nem estava mais por aí. Isso é ótimo. Que bom saber que vocês se deram bem.

– Ele ser muito manso e um ótimo animal. Entender tudo que eu falar para ele.

– Vejo que você fala com os cavalos e eles entendem. Fico contente com isso. Ele agora é seu.

– Ele ser seu. Vai precisar dele para voltar para sua casa.

– Minha família deve pensar que eu estou morto. Nem vão notar se eu não voltar. Minha filha vai ficar com muita saudade.

– Você ter uma filha?

– Fui casado com uma descendente de sua raça. Minha filha é Isabel. A mãe era Ceci.

Ela sentiu um pequeno impacto com essa informação. Ele tivera uma mulher, mas pelo jeito ela morrera ou fora embora. E dissera que ela também era mestiça. Tinha uma chance de ganhar seu coração e assim formar uma família com ele. Poderiam se estabelecer ali mesmo, extrair erva mate para vender, coletar pinhões e vender. Começou a sonhar.

Décio Adams

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