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Gaúcho de São Borja! – Capítulo IV

 

Paixão infantil se transforma em amor.
            Para Margarida a vida fluía plácida e serena. Suas preocupações principais eram dominar os conhecimentos necessários para administrar com sabedoria um lar, supervisionar os trabalhos de criadas, dedicar horas e horas a fazer trabalhos manuais, outras tantas em ler. Todavia, pelo menos duas vezes por semana ela saia a cavalgar pelos domínios da fazenda, em sua bela égua alazão. Fora dada de presente pela mãe por ocasião dos seus quinze anos. Carlota encarregara Francisco de lhe ensinar os rudimentos de montaria, coisa que ela dominara rapidamente. No princípio Francisco a acompanhava pessoalmente, ou encarregava um dos peões de tal tarefa. Enquanto não estivesse segura sobre o animal, havia sempre algum risco de sofrer uma queda num lugar distante e necessitar de socorro.
            Aos poucos ela adquiriu desenvoltura e se aventurou a explorar os recantos mais afastados sozinha. Diversas vezes cuidou de selar o animal ela mesma, pois fizera questão de dominar esse detalhe, para poder se defender em caso de necessidade. Não revelara que, na verdade, sua intenção é sair solitária, a vagar pelos lugares mais ermos, apreciar as belezas naturais que ali estavam disponíveis.
            Em uma dessas ocasiões levou um susto. Estava perto de um córrego, bem na beira de um capão de mato, quando a égua refugou seguir avante. Em vão a amazona instigou o animal a caminhar. Ela ameaçou empinar e Margarida lembrou que era preciso acalma-la, acariciando-lhe a crina, o pescoço e falando calmamente. Com a rédea manobrou para o lado ao que ela obedeceu prontamente. Alguns passos adiante, parou e olhou para trás e então viu uma enorme serpente, pronta para dar o bote, visível sob uma moita de espinheiro, ao lado da qual ela estivera prestes a passer. Pensou consigo mesmo que não havia problema em deixare o animal peçonhento ali, pois aquele lugar pelo visto dificilmente seria usado para pastoreio de gado. Que ficasse ali em paz.
            Em um galope bem disposto retornou para partes menos afastadas e tomou a resolução de não mais ir tão distante, salvo se estivesse acompanhada. Sua sorte for a égua ser muito mansa e ter apenas se recusado a chegar perto do lugar em que estava o perigo. Sua percepção sensorial a avisara da existência do risco. Enquanto o animal caminhava a passo de volta para casa, ia conversando carinhosamente com ela e em diversos momentos recebeu como resposta leves bufidos do animal. Voltou para casa e depois de algum tempo contou para Carlota o acontecido. Uma leve reprimenda pela audácia de ir tão longe e depois um elogio por ter seguido o instinto do animal. Naquela circunstância nenhum cavalo obedeceria ao comando se expondo a uma picada de cobra.
            Passaram a fazer cavalgadas em companhia uma da outra. A mãe, cansada das ocupações administrativas, gostava de percorrer sua propriedade, ver pessoalmente o estado das pastagens, o progresso da criação, de modo que na maior parte das vezes cavalgavam juntas.
            Os meses se sucederam, depois os anos se somaram e Margarida continuava em sua vida alegre e despreocupada. Quando contava com 18 anos completes, houve um fandango na fazenda vizinha e ali compareceram todos os rapazes e moças da redondeza. Os músicos eram excelentes e a dança rolava alegre. Valsas, vaneiras, xotes, tangos, polcas e outras danças se sucediam. Em dado momento Margarida viu Francisco dançando com uma jovem bonita e conversando animadamente. Ao final da música viu que os dois permaneceram parados juntos de mão dada e ela sentiu uma pontada no peito. Haviam convivido mais como irmãos os últimos anos e ele estava em seu pleno direito de dançar com quem quisesse, bem como iniciar namoro e mesmo casar.
            Foi um choque ver o capataz naquela situação. Decidiu parar de dançar por um momento, foi até um pequeno reservado e ali sentou para pensar por alguns momentos. Quando a mãe veio indagar o que havia alegou uma ligeira indisposição, mas não revelou o real motivo disso. Voltou ao salão depois e dançou mas nada estava como devia. Cada vez que levantava o olhar seus olhos caiam sobre Francisco e seu par. Pelo visto havia algo de mais sério acontecendo, do que um leve flerte. O coração de Margarida estava cada vez mais inquieto até que, não suportando mais, disse à mãe que gostaria de voltar para casa pois não estava se sentindo muito bem.
            Carlota levou-a sem demora ao lar e lá Siá Balbina preparou-lhe um chá de camomila com erva doce para acalmar. Aos poucos, mesmo vendo constantemente o par diante dos olhos, o sono a dominou. Dormiu pesadamente, tendo pesadelos onde via Francisco no altar recebendo a bela jovem pore sposa e ela impotente sem poder fazer nada. Ao acordar, pensou longamente no assunto e decidiu deixare o tempo correr. Se fosse desígnio de Deus eles se casarem, não adiantaria nada tentar impedir. De fato em alguns meses ficou sabendo que o casal estava noivo e logo marcariam o casamento. Ela ia frequentemente até a área de trabalho dos peões e conversava com Francisco, usando sempre uma roupa bem bonita, enfeitando o cabelo, exibindo todos os seus generosos dotes femininos. Imaginava que, se tivesse uma chance de conquistá-lo, teria que ser por esse meio, do contrário, precisaria se render às evidências. Um dia alguém repararia nela e lhe faria a corte.
            Em verdade havia vários rapazes da região interessados nisso, mas lhe pareciam muito superficiais, sem consistência. Não queria ter ao seu lado alguém que precisaria ser comandado, como se for a um mero serviçal. Queria um homem firme, decidido e másculo. Isso ela não havia encontrado ainda, tirando Francisco que estava comprometido com outra.
            A data do casamento foi marcada e seria realizada uma cerimônia simples na capela da fazenda e depois um churrasco para os trabalhadores além dos parentes e vizinhos. Tudo foi preparado, sem exageros, mas não havia carência de nada. Seria uma bela festa de casamento como mandava o costume campeiro. Na hora da cerimônia, Margarida demorou mais do que o costume para se arrumar, sendo apressada pela mãe que não queria chegar atrasada.
            No momento em que o padre realizava o ritual do casamento, antes da cerimônia da missa propriamente dita, chegou o momento de perguntar:
          Se alguém entre os presentes tiver alguma coisa que possa impedir esse matrimônio, que fale agora ou cale-se para sempre!
Alguns instantes de silêncio e quando a cerimônia já ia ter prosseguimento, uma voz forte e cristalina se fez ouvir.
          Eu tenho, padre!
Todos os olhares procuraram para a pessoa que pro?nunciara essas palavras e constataram tartar-se de Margarida. Carlota atônita quis saber o que acontecia, mas ela continuous a falar em alto e bom som:
          Padre, eu amo esse homem! Esse homem é meu! Se não puder ser assim, vou sair daqui e irei para um convento para dedicar minha vida a Deus.
          Minha filha! Que é que você está dizendo? Porquê não falou nada antes?
          Eu pensei que era ilusão minha, mas no momento em que vi ele se tornar marido dela, senti que seria a última oportunidade de encontrar o que andei procurando em vão. Francisco, case-se com ela e eu vou ser freira. Se aceitar ficar comigo, prometo agora ser fiel para toda a minha vida. Pode marcar a data do casamento, até mesmo agora eu aceito e aproveitamos todos os preparativos.
Depois de falar isso, Margarida sentou-se no banco e começou a soluçar convulsivamente. Carlota não sabia o que fazer. Queria pedir ao padre para seguir com a cerimônia, queria atender a filha e se estabeleceu uma celeuma complete. A noiva, diante da revelação inquiriu de Francisco o significado daquele fato e o coitado ficou sem palavras. Em nenhum momento desconfiara de nada e não soube o que responder. Tomando isso como uma forma de ocultação da verdade, ela decidiu que não queria mais se casar, rumando para a saída e abandonando o local. Francisco, sem saber como agir, ficou longamente parado, seus olhos perdidos no vazio, tentando atinar com o significado do ocorrido.
Margarida ficara transtornada? Ou quisera fazer uma travessura? Não seria admissível pois jamais lhe dera motive de desgosto. Sempre lhe atendera com boa vontade, fizera suas vontades, seus caprichos de menina mimada. Aos poucos foi penetrando em seu intelecto que, muitos dos atos tomados por manhas de menina rica, na verdade haviam sido tentativas de chamar sua atenção. Ele é que não se dera conta, imaginando estar muito abaixo dos anseios dela. E se estivesse enganado e se tratasse realmente de um mero capricho de Margarida! Enquanto isso se passava, a capela aos poucos foi se esvaziando, os convidados, diante da retirada da noiva voltaram para suas casas e a capela ficou praticamente vazia.
Restavam ali apenas o padre, Francisco, alguns peões e criadas, e a família de Carlota. Esta pediu escusas ao padre, lhe recompensou generosamente dizendo-lhe que conversariam sobre o assunto em outro momento. Agora precisava por ordem em sua cabeça, na da filha e tomar pé daquela balbúrdia.
A notícia do casamento desfeito por obra de Margarida interferindo no momento crucial, se espalhou por toda região como fogo em rastilho de pólvora. Muita gente falou o que devia e o que não devia. Margarida cogitou em ir realmente para um convento, para assim permitir à mãe aos poucos abafar o escândalo. Estavam a pensar nessa possibilidade, analisando as opções que o padre havia sugerido, quando Francisco entrou no jogo.
À tardinha, na hora do lusco-fusco, quando as lides do campo estavam encerradas e todos se recolhiam aos seus lares para o repouso da noite, ele se apresentou na casa grande e pediu para conversar com dona Carlota. Ela o recebeu imediatamente e quis saber se havia algum problema acontecendo na fazenda. Nos dias que seguiram ao casamento frustrado, ela ficara totalmente desligada de tudo.
          Não há nada demais com a propriedade, com o gado, nada mesmo, dona Carlota.
          Então o que o traz aqui Francisco? Você deve estar descontente com o seu casamento desfeito por obra de minha filha. Ela está se preparando para ingressar num convento. Assim ela sai do caminho e você pode refazer sua vida com sua noiva com calma.
          Não é isso que estou pensando fazer, dona Carlota. Estive pensando sobre várias coisas e me dei conta que a menina Margarida muitas vezes me deu sinais de estar interessada em mim como homem, mas eu não percebi. Não me considerava digno de levanter os olhos para ela pensando em algo assim.
          Não que isso seja alguma coisa comum, mas eu não teria ficado nem um pouco surpresa e menos ainda, descontente se isso viesse a acontecer. Para dizer a verdade em muitos momentos cheguei a desejar que assim fosse.
          Não sei agora, mas se a menina Margarida quiser pensar melhor e deixar de lado a decisão de ir para o convento, estou disposto a fazer uma tentativa de nos entendermos.
          Podemos fazer a prova agora mesmo. Basta eu chamar minha filha e perguntar a ela. Você quer?

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