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Gaúcho de São Borja! – Capítulo XIX

 

Estádio Beira Rio e avenida na beira do Guaíba.

 

Área do samba em Porto Alegre, próximo ao Beira Rio.

 

 
 
  Combinando o 

casamento.
Com a questão relativa ao testamento resolvida, nos próximos dias reinou paz na Fazenda Santa Maria. Gaudêncio precisou explicar à Ângela o acontecido. Ela imaginou que todos tinham passado por momentos de apreensão, afinal, se de fato houvesse o direito do pretendente, a situação econômica do noivo ficaria afetada. Não que tivesse ambições a ser esposa de um rico fazendeiro. Sua vida, mesmo não lhe faltando nada no tocante ao básico, transcorrera até recentemente passando uma temporada de alguns meses, um ou dois anos, quando muito cinco em um mesmo lugar. A constante preocupação do pai em galgar, por meio de aperfeiçoamentos, aos postos mais altos da carreira militar, resultara em uma vida praticamente cigana para a família.
Apenas nos últimos dois anos, depois de ascender ao posto de general, haviam iniciado um período de relativa tranquilidade. Mesmo sua vida escolar era uma verdadeira colcha de retalhos, chegava a ter em um único ano letivo, consignação de conceitos em três estabelecimentos geograficamente distantes. A expectativa de viver por anos seguidos em um mesmo lugar, com amplos espaços livres para percorrer a cavalo, de carro ou mesmo a pé, era algo tentador. Estaria disposta a enfrentar uma jornada de trabalho de 6 ou 8 horas se assim fosse necessário. Havia chegado a pensar em ter os pais morando em uma casa na cidade próxima depois da aposentadoria do pai.
O dia seguinte trouxe um novo motivo de preocupação para Ângela. Ao retornar do QG da Região Militar onde ficava seu gabinete de comando, trazia no rosto uma expressão levemente preocupada. Conhecendo os mínimos gestos e até trejeitos do pai, Ângela logo notou haver algo, se não errado, ao menos preocupante ocorrendo. Como quem não quer nada, chegou perto, fez um carinho no pai e recebeu a contrapartida. Assim como ela o conhecia, também ele sabia ver através de seu semblante como por um vidro transparente. Depois de instantes perguntou:
– O que está lhe preocupando, minha menina?
– Eu faço a mesma pergunta a você, meu pai.
– Porque você acha que algo está me preocupando, filha?
– E eu não sei ler seu rosto, as rugas na sua testa, o jeito de olhar? Pode tratar de desembuchar logo. Melhor é chamar a mãe aqui e assim não precisa repetir a explicação depois.
– Não dá para esconder nada de você mesmo. Chame sua mãe e vamos pôr tudo em pratos limpos logo.
Ângela levantou e foi até a cozinha chamar a mãe. Esta quis saber o motivo:
– O que há, filha? Estou ocupada fazendo o jantar.
– Para com isso um pouco e venha aqui. O pai tem alguma novidade que está preocupando ele. Não quis falar, mas eu conheço ele e coloquei contra a parede.
– Você não tem jeito mesmo. Espere um pouco que já vou. Só terminar de tirar isso aqui do fogo para não queimar.
Ângela aguardou um instante e quando a mãe terminou voltaram juntas para a sala, onde o pai via um noticiário local.
– Pode falar, pai. Estamos aqui e somos ouvidos de alto a baixo.
– Não é nada de grave. Apenas fui nomeado para integrar o Estado Maior do Exército em Brasília. Isso significa mudar para lá outra vez.
– Só isso? Apenas mais uma mudança, minha filha!
– Já não basta de mudanças mãe? Pensei que iria conseguir terminar meu curso de pedagogia aqui. Vou ter que transferir para Brasília outra vez.
– Eu posso pedir reforma, mas isso me faz perder um bom tanto do meu soldo de reservista. É apenas por dois ou três anos e então vou me reformar.
– E isso é para logo, ou mais tarde?
– Se eu aceitar, preciso estar lá semana que vem. A mudança podemos fazer depois.
– Nem acabamos de pagar o apartamento ainda, pai. Meu noivado vai fazer água desse jeito. Aqui já fico longe e morro de saudades do meu gaúcho. Imagine em Brasília.
– Uma solução seria vocês casarem. Até terminar a faculdade você poderia morar aqui no apartamento, indo para a fazenda na sexta-feira e voltando domingo ou segunda.
– Mas ficamos noivos há pouco tempo e não sei se o Gaudêncio aceitaria essa situação.
– Só vamos saber se perguntar a ele. Não tem outro jeito.
– Filha, eu casei com seu pai e comecei a rodar por esse país de norte a sul. Nunca mais morei perto de minha mãe. Cheguei a passar mais de dois anos sem ver minha família.
– Vida triste é a de mulher e filha de militar. Não poderia ter arranjado outra profissão, pai?
– É o que eu sei fazer e gosto. Você não gosta de seu curso de pedagogia?
– Gosto sim, pai.
– Então. Aceitaria mudar por conveniência de curso?
– Foi só uma ideia que me passou pela cabeça. Desculpe.
– Não tem o que desculpar. Entendo a situação de vocês.
– Faz o seguinte, filha. Liga lá para a fazenda e fala com seu noivo. Conversando vocês se entendem.
– Nessa hora ele está no colégio. Está entusiasmado com os estudos. Precisa ver. Vou esperar a hora em que ele volta. Isso é lá por umas onze e meia.
            – Nada de fazer tempestade em copo de água. Vamos jantar, assistir um pouco de TV e depois você liga. Acho até que ele deve estar vindo para cá nos próximos dias.
            – Então vamos terminar o jantar e comer. Depois a gente espera a hora e você liga, fala com ele. Dependendo do caso, passamos um tempo aqui e seu pai vai para Brasília e volta no final de semana.
            Passaram o jantar em relativo silêncio, cada um ruminando seus pensamentos. Depois as duas, mãe e filha, lavaram, secaram e guardaram a louça usada. Depois a mãe foi para junto do marido assistir TV. Ângela foi para seu quarto onde tinha seu local de estudos. Tinha por terminar um trabalho de pesquisa para seu curso. Se ocupasse o tempo com algo útil ele passaria mais depressa e sua ansiedade ficaria menos evidente. Assim chegou o momento em que levou a mão para o fone do aparelho. Nesse momento começou a tocar.
            Apanhou o fone sem demora. Logo ouvia a voz forte e clara do noivo falando do outro lado. Parecia um pouco ansioso.
            – Alô, meu amor! – disse ele.
            – Alô, querido! Eu estava levando a mão para ligar para você quando o aparelho tocou. Adivinhou que eu queria falar contigo?
            – Acho que sim. Mas eu também quero falar com você, minha flor.
            – Transmissão de pensamentos. Estou começando a gostar.
            – Eu nem sei como começar a falar.
            – Que tal começar do começo? Não é o melhor a fazer?
            – Você tem razão. Não adianta enrolar.
            – Aconteceu alguma coisa de ruim?
            – Não aconteceu nada. Sabe o que meus pais e meu padrinho estão querendo?
            – Tenho que adivinhar?
            – Pode ser, mas acho que não vou conseguir esperar. Como vou dizer isso? Você aceita casar comigo, querida?
            – Não falei que era transmissão de pensamento?
            – Por que? Seus pais também?
            – É que o papai foi nomeado integrante do Estado Maior do Exército em Brasília e precisa mudar para lá. Por um tempo eu e a mãe vamos ficar aqui, até arrumar tudo por lá.
            – Então acho que vamos juntar a fome com a vontade de comer. Só tem um problema. A sua faculdade como vai ficar?
            – O apartamento vai ficar aqui e eu posso morar nele durante a semana. No final de semana vou para aí e ficamos juntos. Isso só até eu terminar a faculdade.
            – Vamos conversar melhor sobre isso no sábado e domingo. Eu ia na semana que vem para aí, mas acabo de mudar de ideia. Vou nesse final de semana.
            – Vamos encontrar um jeito de resolver isso.
            – E de resto, seus pais estão bem? Sua mãe não ficou chateada com o fato de mudar outra vez?
            –  Ela está acostumada. Reclama um pouco mas logo passa. Faz isso a vida inteira.
            – Então deixamos para combinar os detalhes no final de semana. Vou lhe dizer boa noite, pois amanhã tem muito trabalho e ainda preciso estudar uns exercícios para a escola.
            – Está bem, meu gaúcho intelectual. Espero você no sábado ou sexta.
            – Um beijo e até lá.
            – Outro para você. Estou morrendo de saudades.
            – Eu também, mas logo vamos estar juntos. Um pouco só de paciência.
            – Ainda bem que você não é militar. Eu não aguentaria o que a minha mãe aguentou esses anos todos.
            – Depois de terminarmos os estudos, vamos viver aqui na fazenda e de tempo em tempo fazemos uma viagem para aproveitar a vida. Não adianta nada ter muito dinheiro se não usufruir o que ele pode comprar.
            – Não vejo a hora de isso acontecer.
            – Boa noite, meu bem.
            – Boa noite, querido.
            Desligaram os aparelhos e Gaudêncio soltou um grito de alegria. Joaquim que estava deitado, mas ainda não dormira, se assustou e levantou, vindo ver o que acontecia. Ao encontrar o afilhado com um sorriso largo no rosto indagou:
            – Mas bah tchê! Viu passarinho verde ou o que foi esse grito?
            Demorou alguns instantes até conseguir articular as palavras e falou:
            – Lembra padrinho do que o senhor e meus pais falaram no outro dia?
            – Falamos tantas coisas. Do que você está falando?
            – Da ideia de nós, a Ângela e eu, casarmos logo.
            – E daí, ela topou?
            – O pai dela vai ficar em Brasília como membro do Estado Maior do Exército e vão se mudar para lá. A sugestão é nos casarmos logo. Não é muita coincidência?
            – Verdade, não deixa de ser interessante essa coincidência. Você ligou para ela ou ela ligou?
            – Eu liguei e quando o aparelho tocou lá ela estava pegando o fone para ligar para mim. Vou para lá na sexta-feira para a gente combinar isso direito. Assim, a essa hora da noite, não dá para pensar direito.
            – Não tem problema. Vai lá e resolve essa história. É a melhor coisa a fazer. Assim vocês casam e acaba com a lambança.
            Enquanto isso Ângela foi para junto dos pais e relatou o que acabara de falar com o noivo. Ele viria passar o final de semana e queria conversar sobre o casamento.
            – Viu. Melhor coisa é conversar e colocar as coisas às claras. Ninguém fica na dúvida.
            – Você pelo menos não vai passar a vida inteira de um lado para outro. Eu já estou acostumada e nem ligo mais.
            – Eu avisei quando nos casamos.
            – Não estou reclamando, meu bem. Mas que não é fácil essa vida. Imagine a nossa filha. Passou a infância, aliás a vida inteira, de um lado para outro, se casasse com um militar e tivesse a mesma vida que eu. Acho que ela não iria aguentar.
            – Por isso gostei de namorar um fazendeiro. Vou ter uma vida mais tranquila e sossegada. Pelo jeito vamos poder viajar de vez em quando. Conhecer o mundo. Morro de curiosidade de conhecer outros países. O Brasil eu conheço quase tudo.
            – Até eu estou com vontade de sossegar em um canto. Será que a gente consegue um terreno, ou uma chácara lá em São Borja para passar a velhice?
            – Não perguntei, mas não custa nada pedir informação.
            – Vou perguntar ao seu noivo sobre isso. Mas quero comprar, nada de morar na fazenda. Quero meu pedacinho de chão, por pequeno que seja.
            – Até lá vai ter terminado de pagar a casa. Vende e usa o dinheiro para comprar o pedaço de terra. Deve ter algum lugar assim por lá.
            – Isso seria meu sonho também, meu querido. Ainda ficar perto da nossa filha fica melhor.
            – Vamos conseguir realizar esses sonhos, minhas preciosas.
            – Vamos viver todos perto uns dos outros. Isso vai ser ótimo. Agora vou dormir que amanhã tenho que ir cedo para a faculdade.
            – Durma bem, filha. Deus te abençoe.
            – Obrigada pai. Benção mãe!
            – Deus lhe abençoe, filha.
            No final da semana, na sexta-feira pouco antes do almoço, Ângela chegava da faculdade e encontrou Gaudêncio desembarcando do táxi vindo do aeroporto. Se abraçaram e subiram para o apartamento onde dona Lourdes terminava o almoço. A diarista estava fazendo a faxina semanal. Eram apenas três pessoas e cuidavam para não sujar em demasia, tornando desnecessária a presença diária de uma empregada. Bastava uma fazendo a limpeza geral na sexta-feira para deixar o apartamento em ordem pelo resto da semana. Foi recepcionado pela dona da casa como se fora filho. Soubera tratar bem a mãe de Ângela, seguindo o conselho da mãe Maria Conceição que lhe dissera: Se quiser ganhar a boneca, trata bem da caixa. Ele entendera direito o recado.
            O general estaria ocupado com reuniões preparatórias para transmitir o cargo de comandante da região ao substituto que já estava na cidade. Pretendia terminar na terça feira essa parte para então viajar na quarta feira e se apresentar no novo posto que lhe fora designado. Almoçaram os três e a diarista também foi convidada a sentar-se. Esse fato agradou a Gaudêncio, pois demostrava simplicidade e consideração com os mais humildes. Não teria ficado bem impressionado se a serviçal fosse posta para comer lá num canto, ou mesmo na área de serviço. Lembrou da maneira em que tratavam os empregados da fazenda. Na hora da refeição não se fazia distinção entre patrões e empregados. Na hora do trabalho, uns comandavam, outros obedeciam e trabalhavam para tudo funcionar direito. Na mesa eram todos iguais.
            Como não poderia deixar de acontecer, a conversa logo enveredou para o assunto do momento. A nova transferência da família para a capital federal. A diarista olhou espantada interrogando:
            – Vou perder meu trabalho?
            – Por enquanto não, Alzira. Eu e a Ângela pelo menos vamos ficar mais um tempo aqui até arrumarmos casa ou apartamento na capital.
            – Não é sempre que se encontra um lugar bom para trabalhar. Tem cada patroa por aí que vou contar uma coisa.
            – Se isso vier a acontecer, nós a recomendaremos a gente que está esperando por alguém como você. Não fizemos isso por enquanto por não querermos perder seus préstimos.
            – Eu nem ia querer sair daqui para um outro lugar qualquer.
            – Onde você for, vai se dar muito bem. Assim como tem patroa que é uma coisa, há cada diarista que não vale nada. Quando se encontram e se entendem, dificilmente se largam. Só mesmo em último caso.
            Gaudêncio olhou firme para Ângela e falou:
            – Quando nós casarmos ela pode ir junto e trabalhar direto para você na fazenda.
            – E donde fica a fazenda?
            – Na fronteira com a Argentina, em São Borja.
            – Qui longe. Eu nunca fui mais que aqui em Viamão, São Leopoldo. Nem inté Santa Maria eu fui.
            – São Borja é mais que o dobro do que Santa Maria. Mas é um pulinho de gato. Vai num pé e volta no outro.
            – Credito! Isso deve de demora um dia e pouco de viagem, se não mais.
            – Eu saí hoje nove e pouco. Antes do meio dia estava aqui.   
            – A sim. De vião, eu também.
            – A Alzira não é boba não. Bem espertinha a danada.
            Ângela falou:
            – E vai ser preciso empregada para nós dois nos primeiros tempos?
            – E quem disse que vamos ficar só nós dois por muito tempo? Eu quero é logo encomendar umas prendinhas e uns piazitos.
            – Devagar com o andor que a “santa” aqui não é de ferro. Está certo que falou que me quer só para tirar umas crias, mas não é bem assim não.
            Todos se puseram a rir, especialmente a diarista diante da expressão usada por Ângela. Ela falou rindo:
            – Nunca que ouvi dizer uma coisa dessa. Querer a mulher só pra tirar umas crias, – e ria a valer.
            – Mas eu disse isso para o pai dela quando conheci a família. Ele não queria me deixar entrar e eu não queria ir embora sem conhecer a prenda.
            – Isso deve de ter sido engraçado.
            – E foi mesmo, Alzira. O general com aquela seriedade toda, falando e querendo desviar a conversa e o moço ai cortando papo. Trovando e arrumando desculpas, até se sair com essa.
            – Mas pra mó de que isso?
            – O homem falou que ela era um bocadinho manca e daí eu respondi isso.
            O riso foi geral e provocou engasgo para todo lado. Foi necessário recorrer ao uso dos guardanapos para evitar causar um esparramo de migalhas, respingos e grãos de arroz por todo lado. Depois que o riso aquietou terminaram de comer em silêncio, temendo que, à qualquer palavra pronunciada, desatassem em novo acesso de riso.
            Finda a refeição, Alzira foi continuar com sua faxina e os outros se uniram para recolher as coisas da mesa, lavar a louça, secar e guardar. Deixaram em minutos tudo limpo e pronto para ser usado mais tarde. Foram sentar-se por algum tempo diante do aparelho de TV para assistir ao jornal. Véspera de sábado, sempre havia um grande movimento em direção aos lugares de lazer. As cidades serranas eram bastante procuradas, nessa época do ano, devido ao clima de inverno, as pousadas, os vinhos coloniais, queijos e comida italiana. Um atrativo forte para a população mais abastada das cidades.
            Nessas ocasiões sempre aconteciam acidentes, com vítimas fatais e feridos. Um fato lamentável, mas não havia como evitar os abusos cometidos por alguns motoristas. Muita gente terminava tendo, em lugar de um final de semana de descanso, uma tragédia para lamentar por muito tempo. O mais terrível disso tudo eram os inocentes atingidos pela imprudência de poucos. Era urgente serem tomadas medidas preventivas para coibir essas ocorrências tão tristes. Cabia aos colegiados parlamentares de nível federal debater e aprovar legislação mais severa relativamente a essa questão. Muitas vezes havia o envolvimento com bebidas alcoólicas nessas ocorrências.
               Pouco depois, terminado o jornal, o televisor foi desligado, pois iniciou a transmissão de programas infantis. Dona Lourdes desculpou-se e foi cuidar de umas roupas que estavam secando na máquina. Teria que colocá-las um pouco no sol para completar o processo. Ângela e Gaudêncio ficaram um minuto em silêncio. Em dado momento, Gaudêncio falou:
            – Me conta direito como é que fica essa questão de seu pai ir para Brasília?
            – Antes de ele passar para a reserva, querem ele integrando o Estado Maior do Exército. Para ele é uma honra e daria um último empurrão na carreira dele, além de significar uma boa diferença no soldo de aposentado.
            – Ele precisa cuidar de sua vida. Quanto maior for seu provento depois de ir para reserva, melhor será a vida dos dois.
            – Não há o que discutir. Ele precisa ir para lá, isso nem se discute. O que eu não quero é ter que transferir minha faculdade para lá. Sempre causa atrasos, pois tem que fazer adaptações e tal. A única dúvida é se você aceita que eu fique aqui na capital durante a semana e no final de semana vá para fazenda, depois de nos casarmos.
– Isso é complicado. Mas não posso esquecer que eu também tenho aulas para ir durante a semana e não vai fazer muita diferença.
– Seria só o resto desse ano e o ano que vem. Prometo que não vou pegar nenhuma dependência para atrasar meu curso.
– Não amor. Nem há necessidade de fazer esse tipo de promessa. Vamos ter o resto de nossas vidas para ficarmos juntos depois. Tudo isso vai ser para o nosso bem no futuro, não é verdade?
– Isso é verdade sim. Nem te conto a vontade que tenho de ir morar na fazenda de uma vez, mas lutei muito para chegar nesse ponto e não quero perder o que já fiz.
– Nem pense nisso. Eu sei a falta que faz estudar. Hoje corro atrás e não vou parar de jeito nenhum. Não vou pedir que você faça isso.
– Vamos precisar combinar com o papai e mamãe quando vamos fazer o casamento. Onde vai ser? Aqui? Na fazenda?
– Por mim pode ser aqui, agora, no mês que vem, na fazenda, no fim do ano, pouco importa. Quero é casar com você e quanto antes melhor.
– Mas uma pequena viagem de luz de mel, vamos ter, não vamos?
– A viagem que você quiser, amor.
– É que agora está muito perto das férias. Falta só um mês e meio. Fica muito encima da hora.
– Nem pensei nisso. Você tem aula, eu tenho aula, o tempo é pouco, só mesmo deixar para o fim do ano. Comecinho do ano que vem.
– Aí dá para planejar tudo direito. Preparar o vestido, a festa, os convidados e o lugar para onde vamos viajar.
– Já estamos chegando a um entendimento. Vai faltar só acertarmos os ponteiros com seus pais.
– Você prefere fazer a festa aqui na capital ou na fazenda?
– Acho que seria melhor na fazenda, pois para trazer aquele povo todo para cá, não daria certo. Só fazendo uma festa depois para eles.
– Nós não temos parentes aqui, apenas alguns amigos. A maioria dos amigos moram longe mesmo. Se vierem, vão ter apenas que viajar um pouco mais. Isso não fará a menor diferença.
– Então, está decidido. Fazemos a festa na fazenda e arrumamos um avião para levar seus amigos para lá.
– Eles se viram. Vão de avião, carro e mesmo de trem.
– Tudo a ser combinado.
– O que vocês estão combinando?
– Você estava aí mãe, ouvindo?
– Cheguei agora. Ouvi só o final sobre tudo a ser combinado.
– O que você acha mãe? Vamos casar no começo de janeiro, fazemos a festa na fazenda e viajamos em lua de mel. Depois de voltarmos, quando recomeçarem as aulas, venho e fico aqui durante a semana. No final volto e assim passamos o primeiro ano.
– Já está tudo combinado, então?
– Queremos saber se vocês aprovam. Estivemos planejando.
– Não é uma má ideia. Dá tempo de pensar em tudo direito, sem atropelos. Seu pai acho que vai gostar desse arranjo. É quase certo isso.
– Vou conversar com o padre da paróquia para ver a questão da documentação na igreja, com o juiz e tudo mais.
            – Eu fico morando com Ângela aqui até o final do ano. Até lá arrumamos um lugar para morar na capital pelo tempo que vamos ficar por lá.
            – Sei que não é o sonho de uma moça ao casar. A maioria quer ir morar com o marido, em sua casinha e tudo isso. Mas não vou jogar fora meu esforço para conquistar meu lugar na faculdade.
            – Isso não filha. Seria um desperdício e mais tarde viria a se arrepender. Basta eu que deixei de estudar no tempo de moça. Hoje, se desse tempo, ainda iria fazer uma faculdade.
            – Mas você ainda pode, mãe. Tem na minha turma umas três ou quatro senhoras de tua idade. Não sei se não são mais velhas mesmo. Nada te impede de estudar.
            – Não sei se vou ter força para encarar isso nessa idade.
            – Você é jovem, mãezinha. Faz uma revisão das matérias e enfrenta o vestibular. Não precisa ter medo algum.
            – Vou pensar nessa ideia. Preciso convencer seu pai a ficar sozinho enquanto eu for para a escola.
            – Ele arranja o que fazer. Por que não aproveita nesse tempo em Brasília? A Universidade de lá é boa e tem muitos cursos. Pode escolher à vontade. E acho que a concorrência não é muito grande.
            – Vou ver isso agora no segundo semestre. Uma semana dessas viajo para lá ao encontro de seu pai e me informo direitinho.
            – Eu lhe dou a maior força, dona Lourdes. – falou Gaudêncio.
            – Obrigada pela força de vocês dois. O mais difícil vai ser vencer minha própria inércia.
            – Vamos dar uma volta, mãe?
            – Vão vocês. Eu vou preparar um jantarzinho legal para nós de noite.
            – Tem tempo depois para fazer isso.
            – Eu pago o jantar e vamos jantar fora. Está resolvido.
            – Nesse caso, não vou ter o que fazer mesmo, podemos ir. Mas onde vamos?
            – Que tal irmos passear na beira do Guaíba, ver o pôr do sol?
            – Mas o pôr do sol ainda está longe.
            – Aproveitamos para passear, ver como está aquilo por ali. Faz tempo que não vamos para aquele lado. Aliás no entardecer nunca fui por lá.
            – Vamos indo. Pega a chave do meu carro lá no chaveiro da cozinha. Vou assim mesmo. No carro tem uma blusa para o caso de esfriar muito.
            – A gente passa pelo QG e pegamos o pai na saída. Ele foi de carro do comando mesmo. Vão trazer ele aqui. Pegamos ele no caminho.
            – Boa ideia. Assim comemoramos a marcação do casamento e acertamos os detalhes.
            – Para isso tem tempo amanhã e domingo mesmo.

Pôr do sol nas margens do rio Guaíba
            Desceram depois de fechar o apartamento. A faxineira terminara o serviço e fora para casa. Voltaria na semana seguinte. Passearam pelas avenidas arborizadas até a beira do rio. Ali o espetáculo de movimentação de barcos de todos os tamanhos indo e vindo, gente caminhando, barracas de comida e vendas de mercadorias diversas. Muita coisa não inspirava a menor confiança a quem tinha hábitos minimamente mais higiênicos. Bolinhos gordurosos, peixes fritos, pastéis, coxinhas, espetinhos de carne assada, um a verdadeira celeuma. O cheiro não era dos mais agradáveis e não se detiveram por muito tempo. Apesar do espetáculo do sol descendo na outra margem do rio, a permanência ali não era agradável.
            Retornaram às ruas do centro, atravessaram para o outro lado onde ficava o QG do comando e se posicionaram para aguardar a saída do general. Depois de algum tempo, ouviu-se o toque de saudação ao comandante que se retirava da unidade e Ângela desceu do carro, indo na direção do portão. Logo o veículo transportando seu pai apareceu e parou:
            – Que faz você aqui, minha filha?
            – Viemos lhe buscar pai para irmos jantar em um lugar bem bacana.
            – Onde está sua mãe?
            – Ali, no carro junto com o Gaudêncio. – disse apontando onde estavam os dois.
            O general dispensou o motorista, dizendo-lhe que não iria precisar de seus serviços no final de semana. Voltasse a passar em seu edifício na segunda cedo, antes da hora do início do expediente. Desembarcou e acompanhou a filha até o automóvel. Foi cumprimentado pela esposa e pelo futuro genro. Aproveitaram para irem até as proximidades de São Leopoldo onde encontraram um restaurante típico para jantarem.

Pôr do Sol às margens do Guaíba, POA.


            Contaram ao general o que haviam conversado e ele só fez concordar. Haviam resolvido tudo e apenas aprovava as providências a serem tomadas. Gaudêncio lhe garantiu que se encarregaria da organização da festa. Não haveria necessidade de preocupação com isso. A família de Ângela faria a lista de convidados e iriam encomendar os convites. Mas isso também não era algo assim tão urgente. Faltavam mais de sete meses para o evento. Haveria tempo mais que suficiente para tomar essas providências todas.
            Assim o final de semana transcorreu na mais absoluta paz. O General estava especialmente satisfeito por ter sido escolhido para o novo posto. Sua carreira como militar consciente estava sendo coroada de êxito mediante a ocupação de um lugar no Estado Maior do Exército. Foram assistir ao jogo de Internacional e Grêmio, resultando em vitória do colorado, para desgosto de Gaudêncio. Mas se conformou. Um dia era a vez de um, no outro era a vez do outro. Ninguém tinha como ganhar sempre.
            No sábado à noite ligaram para São Borja e avisaram dos detalhes combinados até aquele momento. Tanto Pedro Paulo, Maria Conceição e Joaquim ficaram satisfeitos. Estavam todos a disposição para o que fosse preciso. Nada iria faltar na festa de casamento desse casal. Havia tanta gente torcendo pelo êxito e felicidade dos nubentes que seria muita injustiça se algo acontecesse para frustrar essa realização.

            O final de semana terminou e Gaudêncio voltou, ficando na cidade para as aulas da noite de segunda-feira. Voltaria após o término ou na manhã de terça. Tomaria essa decisão na hora da saída. Se estivesse muito cansado, dormiria ali e retornaria à fazenda pela manhã.

Anoitecer no Guaíba.

 

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