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De peão a soldado.
Gumercindo Nunes Ribas era um próspero estancieiro nos campos das proximidades de Santa Maria da Boca do Monte. Era no começo do século XIX, um homem na faixa de seus 50 anos de vida. Seu capataz era Francisco Lopes Batista, casado com Salviana Maria Silva Batista. Em 23 de março de 1804 nasceu dessa união um menino. Depois de três lindas meninas, finalmente um homem para regozijo do pai Francisco. Andava preocupado em ter somente filhas e nenhum machinho para dar continuidade à família Batista.
Em menino conhecera a região das missões jesuíticas, especialmente a localidade de Caaró e tomara conhecimento dos mártires Afonso Rodrigues, Roque Gonzales e João del Castilho. Sabedor da morte violenta dos três, prometeu naquele momento que seu primeiro filho receberia o nome Afonso, em homenagem a um dos homens que sacrificara a vida pela evangelização dos indígenas. Se mais viessem iria homenagear também aos outros dois. Assim sendo, de comum acordo com Salviana, registrou o menino com o nome Afonso Silva Batista. O patrão Gumercindo e sua esposa Emerenciana Gomes Ribas foram os padrinhos.
O menino cresceu forte e saudável. Quando a família real portuguesa aportou no Rio de Janeiro em 08 de março de 1808, estava o pequeno Afonso na iminência de completar três anos de vida. Com a abertura dos portos brasileiros a todas as nações amigas de Portugal, inclusive Inglaterra, conheceu a ex-colônia, agora Brasil Reino Unido ao de Portugal e Algarves, um surto de progresso nunca visto anteriormente. Navios de diferentes procedências aportavam em busca de produtos exportáveis. Esse progresso refletiu-se na vida dos estancieiros do sul, que tiveram novos mercados para exportação do charque e couro, seus principais produtos.
Em 1820 a família real viu-se na contingência de retornar a Portugal, ficando aqui o filho D. Pedro, na qualidade de Príncipe Regente. A inexistência de tropas portuguesas em quantidade significativa, sendo o exército constituído na maior parte de nativos do Brasil, surgiu a pressão sobre o príncipe, que proclamou a independência no dia 07 de setembro de 1821. Nascia o Império do Brasil, sendo seu primeiro monarca D. Pedro I. Esse fato encheu de orgulho os brasileiros em geral, mas não durou muito esse clima de euforia. Os problemas se fizeram sentir e insatisfações estouraram por todo lado. Não suportando as pressões de uma forte oposição, chegou o dia 07 de abril de 1831, quando D. Pedro I, abdicou em favor de seu filho, o príncipe D. Pedro de Alcântara em que D. Pedro I renunciou e favor do seu filho Pedro de Alcântara.
Nascido em 02 de dezembro de 1825, o príncipe contava com 5 anos e 4 meses quando seu pai abdicou da coroa imperial em seu favor. Instalou-se um período regencial enquanto o menino não alcançava a idade para assumir o poder. Esse período foi altamente conturbado, ocorrendo revoltas de maior ou menor vulto por todos os cantos. Entre elas, a de maior envergadura e duração, foi a Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, na província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Em 19 de setembro de 1835, tropas rebeldes, tendo na liderança nomes como os generais Bento Gonçalves, Antônio de Souza Neto, Davi Canabarro, José Mariano de Mattos, Gomes Jardim, coronéis Onofre Pires, Lucas Oliveira, Corte Real, Teixeira Nunes, Domingos de Almeida, Domingos Crescêncio de Carvalho, deputado Vicente da Fontoura, inspiração de italianos refugiados como Tito Lívio Zambecari, Luigi Rossetti e Giuseppe Garibaldi, proclamaram a república do Piratini.
Teve início um longo período de conflito entre os denominados “farrapos” e o exército imperial. Em toda parte os estancieiros eram conclamados a fornecer homens para constituir um exército mais forte e assim defender a recém declarada independência da província. Gumercindo Nunes Ribas, não tinha saúde nem idade para enfrentar as agruras de uma batalha, mas se dispôs a contribuir para o esforço de guerra, cedendo homens e recursos financeiros dentro de suas possibilidades.
Assim, Afonso Silva Batista, nessa altura casado com Zulmira da Costa Batista, se viu, de um dia para o outro, partindo para os campos de batalha. Deixou para trás a esposa, dois filhos de 4 e 2 anos respectivamente. Sem saber, um terceiro estava crescendo no bucho de Zulmira. O pai voltou a se ocupar do serviço de capataz, há algum tempo desempenhado pelo filho. Os outros dois mártires haviam ficado sem sua homenagem, pois Salviana nunca mais conseguira engravidar depois de um parto difícil que trouxera ao mundo Afonso.
De espírito voluntarioso, Afonso, embora sentindo a separação da mulher, filhos e demais familiares, partiu resoluto, junto com outros seis peões igualmente cedidos por Gumercindo. Todos eram hábeis cavaleiros, sabiam manejar qualquer arma de fogo e também um facão. Não seria difícil aprenderem a usar também uma espada se assim fosse necessário. Apresentaram-se às tropas do General Antônio de Souza Neto, onde foram inicialmente enquadrados como soldados. Depois de alguns dias de treinamento básico, começaram a fazer parte da tropa e estavam prontos para o combate.
Participaram de diversas batalhas, destacando-se pela valentia e habilidade na luta. Iniciaram sua participação no início de 1836. Afonso em pouco tempo foi promovido a cabo, logo depois a sargento. Seus companheiros também receberam suas promoções. Com isso foram destacados para unidades diferentes e não mais combatiam lado a lado. Sempre que podiam buscavam notícias uns dos outros, eventuais ferimentos ou mesmo a morte de algum deles seria algo comum de ocorrer. Em 1837 estavam acampados nas proximidades de Santa Maria e Afonso conseguiu permissão do comandante para visitar a família.
Ao chegar teve a surpresa de encontrar no colo da esposa mais um menino e ela lhe contou que ele nascera exatamente oito meses e meio depois de sua partida para a guerra. Organizaram o batizado e lhe puseram o nome Antônio Costa Batista. Estava prestando homenagem ao general Antônio, seu comandante geral no começo de sua vida como soldado. Nesse tempo já era cogitada sua promoção a tenente, em vista de sua aptidão para o comando. Passou com a família o tempo de folga que recebera e novamente, sem saber, deixou no bucho de Zulmira sua semente. Dessa vez foi uma menina que nasceu ao final de nove meses.
Esteve envolvido no transporte dos barcos de guerra construídos por Garibaldi, da Lagoa dos Patos para o oceano Atlântico, mas não embarcou. Ficou em terra, participando dos combates em diversas ocasiões. Em 1839, já como tenente no comando de um pequeno contingente travou renhido combate com um esquadrão de cavalaria imperial, conseguindo manter a posição até receber o reforço do restante de seu regimento. Dessa batalha, resultou um ferimento na cocha esquerda que percebeu apenas depois de finda a refrega. Ficou no hospital de campanha e dali o médico aconselhou a concluir sua restauração em casa, com a família. Lá certamente teria melhores condições de alimentação e higiene do que ali, num catre, muita humidade nos meses de inverno, sujeito a uma infecção severa com consequências imprevisíveis.
Foi então que conheceu a filha, na qual colocou o nome de sua mãe Salviana Francisca, homenageando também ao pai. O aconchego do lar, os cuidados da esposa e o amor dos filhos, fizeram milagre. Em poucos dias o ferimento, que estava querendo a arruinar no hospital, fechou, deixando no lugar apenas uma cicatriz bastante grande e de aspecto não muito agradável. Pouco importaria, pois não ficaria exposta mesmo para os outros verem. Depois de um mês de repouso estava pronto para voltar aos campos de batalha.
Despediu-se da família, do patrão agora com quase 80 anos nas costas, mas ainda forte e bem disposto. Encontrou a tropa do Coronel Onofre Pires a quem se apresentou. Ficou sabendo que sua unidade estava mais ao sul e próxima de Porto Alegre. Estando em falta de oficiais em seus quadros lhe ofereceu o comando de um grupamento de vanguarda. Teriam que esquadrinhar o terreno à frente, entre a tropa acampada se preparando para atacar um contingente imperial. Prontamente aceitou, com a condição de informar ao seu comandante da situação. Se encontrassem a tropa de Antônio, gostaria de voltar a ser seu comandado.
Na madrugada do dia seguinte, depois de percorrer um longo trecho de vegetação bastante cerrada, sem terem encontrado sinal de inimigos, estacaram diante do ruído de acampamento militar em vias de acordar para o dia que se avizinhava. Destacou vários grupos de três homens que se aproximaram de direções diferentes para observar e avaliar o contingente, o aparente estado da tropa e reunindo o máximo de informações possíveis. Desconfiava tratar-se de um regimento inteiro e mais grupos isolados se preparando para atacar a posição farroupilha. O próprio tenente Afonso levou consigo dois homens e foi fazer por sua vez a própria observação.
Chegaram bem próximo de um posto de sentinelas avançado e aguardaram um momento. Era perceptível a movimentação de troca de sentinelas nos outros postos. Sinal de que em pouco tempo isso iria ocorrer ali também. Sem perder tempo, ordenou aos dois homens que atacassem a sentinela silenciosamente. Um deles provocou um ruído à frente enquanto o outro veio pelas costas e lhe aplicou uma forte pancada na cabeça com a coronha do fuzil. Sem delongas Afonso retirou as roupas do soldado e as trocou pelas suas, postando-se no lugar do homem desacordado com a pancada.
Alguns minutos depois chegou o grupo de soldados sob o comando de um sargento para realizar a troca da guarda. Conseguiu murmurar a senha como se estivesse muito sonolento, levando um safanão do sargento para que acordasse. Logo estava marchando para o acampamento. Lá chegando, esperou deitado em um catre de campanha que os demais dormissem e saiu sorrateiro, indo bisbilhotar o setor de comando. Ludibriou a sentinela, entrando pelo lado oposto, ligeiramente às escuras. Encontrou todas as informações que buscava, como o número de homens, as ordens superiores para os próximos dias e memorizou tudo rapidamente.
Por precaução afastara a arma do comandante do alcance de sua mão, para a eventualidade de ele acordar enquanto estava ali. Teria tempo de domina-lo e depois encontrar uma forma de se evadir em segurança. De posse das informações procuradas, percorreu o caminho inverso, dessa vez afastando-se do caminho do posto da guarda e dirigindo-se para um ponto em que sabia estariam seus homens. Ao conseguir se afastar do acampamento, ouviu um leve assobio e respondeu. Era o sinal combinado com os seus comandados para se identificarem. Logo estavam reunidos com o resto do contingente, tendo os demais espias também retornado.
Ouviu atentamente o que cada grupo havia descoberto de interessante, juntou todas as informações e fez um soldado que escrevia bem, redigir um comunicado sucinto ao coronel Onofre, fornecendo todas as informações obtidas. Fez redigir duas cópias, e mandou dois homens, seguir por caminhos diversos para levar a mensagem ao comandante. Se houvesse batedores inimigos e topassem com o seu homem, a mensagem corria o risco de não chegar ao destino. Chegou a pensar na hipótese de mandar mais um, mas pensou que não haveria mais de um grupo de batedores na vanguarda da tropa imperial.
Os homens partiram e eles avançaram para um ponto em que podiam observar a movimentação no acampamento. Qualquer mudança que houvesse, teriam tempo de tomar alguma decisão de emergência, ou sair na dianteira para avisar o grosso de sua tropa. Coronel Onofre recebeu as duas mensagens com poucos minutos de diferença e elogiou imediatamente a sensatez do tenente. Era de uma sagacidade acima da média geral. Depois de ler avidamente a mensagem e conversar com os dois homens que esclareceram suas dúvidas a respeito da situação, fez a tropa levantar acampamento imediatamente e partir. Se fizessem isso sem demora, surpreenderiam o inimigo em meio ao café da manhã ou logo depois. Um momento de descontração propício a um ataque rápido e fulminante.
A superioridade numérica do inimigo, seria compensada pelo inesperado do ataque. Os homens não esperaram segunda ordem. Um pequeno grupo ficou encarregado de, em caso de vitória e mudança de acampamento, desmontar o bivaque e seguir para o novo lugar. Do contrário esperariam o retorno da tropa para seguir para novo destino ou bater em retirada. Avançaram rapidamente, tomando cuidado para não produzir ruídos excessivos, que poderiam alertar o inimigo. Chegaram ao posto em que se encontrava o destacamento de Afonso e este foi cumprimentado pelo coronel. Rapidamente traçaram um plano de ataque enquanto os homens do exército imperial estavam se preparando para o desjejum.
Quando a rápida refeição ia a meio, o contingente de Onofre atacou, vindo de todos os lados, dando a impressão de tratar-se de uma tropa muito mais numerosa do que realmente era. Estratégia sugerida por Afonso e posta em prática pelo comandante. Tomados de surpresa, os soldados imperiais e seus comandantes demoraram preciosos minutos para atinar o que realmente estava acontecendo. Iniciou-se um violento combate corpo a corpo. Os atacantes, em maioria montados, lançavam os animais sobre os inimigos que se encontravam a pé, levando assim uma enorme vantagem. A tropa de cerca de 1200 homens foi vencida por pouco mais de 400 farroupilhas. Em menos de meia hora, um grande número de imperiais jazia no chão, mortos ou gravemente feridos, inclusive o comandante.
Vendo-se sem comando, com os oficiais também tombados, os soldados se renderam em número inferior a 300. Os farrapos mais ferozes caminhavam por entre os mortos e desferiam golpes de misericórdia nos feridos para lhes abreviar a agonia. Os demais foram empurrados para o lugar onde o coronel Onofre se encontrava. Sem demora ele ordenou ao grupo de sua confiança, encarregado de executar os prisioneiros. Nesse momento Afonso procurou uma forma de ficar afastado, pois não suportava essa prática, embora soubesse da quase impossibilidade de fazer um grande número de prisioneiros. Não tinham onde trancafiar tanta gente e mantê-los a céu aberto representava dispêndio de homens na vigilância, recursos escassos na alimentação. Sem contar a possibilidade de algum deles conseguir escapar e levar informações importantes aos comandantes inimigos.
Desde longa data, nas guerras e revoluções havidas nessas paragens, os prisioneiros eram executados rapidamente pelo procedimento da degola. Cada comandante tinha às suas ordens alguns especialistas nessa tarefa e em poucos minutos um grupo bem numeroso de prisioneiros deixavam de existir. A munição era cara e escassa, por isso usava-se a arma branca, bem afiada. Matava com eficiência e em silêncio. Os prisioneiros lamentaram não terem lutado até a morte, pois ao menos não passariam pela angústia da espera do momento fatal da lâmina rasgando suas gargantas.
Embora nos jornais do império os farrapos fossem severamente criticados por essa prática, os comandantes do exército imperial adotavam o mesmo proceder. Nem um nem outro lado dispunha de prisões capazes de conter tantos prisioneiros, nem de homens suficientes para vigiá-los dia e noite. Por essa razão a famigerada “degola” era coisa vulgar e sempre presente, especialmente ao final dos combates. Afonso aproveitara o fato de ouvir um ruído de galope não longe e saíra com um grupo de seus comandados em perseguição. Assim conseguira se afastar sem levantar suspeitas e não ser obrigado a presenciar o espetáculo que lhe revoltava o estômago. Também não queria demonstrar fraqueza diante de seu comandante, nem dos comandados.
Depois do sucesso da empreitada, coronel Onofre mandou um comunicado ao comando geral dos revoltosos, informando da presença sob seu comando do Tenente Afonso Silva Batista e sua promoção a Capitão por bravura. Conseguiu um que o barbeiro, experiente com linhas e agulhas, bordasse sem demora uma estrela a mais nas divisas do novo Capitão e, diante do resto da tropa, fez a solene proclamação do ato. Houve mais duas promoções de sargentos a tenentes, por comportamento destacado no combate. Por cerca de um ano e meio ficou Afonso sob o comando do Coronel Onofre até ter oportunidade de desfazer a troca de regimento.
O antigo comandante ficou satisfeito com a sua promoção e o recebeu com alegria para ocupar o comando de um de seus esquadrões. Estavam no final de 1940 e as coisas não corriam muito bem para a República do Piratini. A derrota em Laguna – SC onde fora proclamada a República Juliana por Davi Canabarro, sendo Giuseppe Garibaldi e Anita, sua esposa, obrigados a bater em retirada através dos campos e serras da província vizinha, retornando ao Rio Grande. Desentendimentos entre os comandantes, desavenças com o presidente Bento Gonçalves, a gradativa escassez de armas, munição e suprimentos de toda ordem, começou a minar as forças farroupilhas.
Mesmo assim conseguiram manter a luta acesa por mais quatro anos, até quase metade de 1845, quando finalmente ocorreu a rendição. O Imperador D. Pedro II, cuja maioridade fora proclamada antes de alcançar a idade apropriada, tratou com generosidade os revoltosos que depuseram as armas, visando restabelecer a paz em todo território. Era de suma importância ter a província pacificada para enfrentar eventuais crises com as províncias recentemente tornadas independentes da coroa espanhola. Em um dos últimos confrontos, Afonso foi atingido por um projétil de fuzil que lhe inutilizou o joelho direito. Por mero acaso escapou de amputar o membro, pois tivera a graça de não ser rompida nenhuma artéria de grosso calibre, sendo possível manter a circulação na parte inferior e iniciar um lento processo de cicatrização.
Um amigo, também ferido, mas menos seriamente, ao ser assinada a rendição, providenciou a remoção do agora Major Afonso, usando para isso uma carroça puxada por uma parelha de bois. Foi assim que ele chegou em casa e foi recebido pela família. O pai estava idoso e alquebrado. A mãe se esforçava por dispensar ao marido adoentado os cuidados ao seu alcance. Os filhos estavam crescidos, estando a menina com pouco mais de seis anos. Além do ferimento, trouxera dos campos de batalha uma tosse persistente, resultado de muitas horas com as roupas molhadas, suportando frio, alimentação deficiente e pés precariamente calçados.
A Fazenda estava bastante decaída, depois de sucessivas sangrias feitas em favor do exército farroupilha, unidas à falta de trabalhadores jovens capazes de cuidar adequadamente do gado, especialmente das vacas e touros reprodutores. Por sorte, o término do conflito talvez tivesse vindo em boa hora para evitar a derrocada total da propriedade. O próprio Gumercindo Nunes estava mais idoso e com a saúde agora precária. Os filhos também haviam ido combater ao lado dos patrícios. Logo estariam retornando. Em sua ausência a filha tratara de comandar da forma que podia o andamento dos trabalhos na fazenda. Afonso, depois de alguns dias em repouso e recebendo os cuidados da esposa e dos filhos mais velhos que já estavam trabalhando como gente grande, começou a se recuperar.
Quando conseguiu ficar em pé e apoiado em uma muleta, saiu para o pátio, se aproximou do galpão, antes sempre bem cuidado e limpo, agora decaído e precisando urgentemente de reformas. Lágrimas amargas correram pelas suas faces. Todo sacrifício que fora feito em prol da independência da província, fora insuficiente para alcançarem o objetivo maior. Restava juntar os cacos e tentar construir alguma coisa com o que sobrara. Em alguns dias estava suficientemente forte para se aventurar a uma cavalgada. A dificuldade era montar e depois manter-se sobre o animal, com a perna rígida em virtude do ferimento. Foi preciso encontrar uma forma de se colocar sobre a sela.
Nesse meio tempo os filhos de Gumercindo retornaram, sendo que um deles aproveitara a anistia oferecida pelo Imperador e aceitara a patente de Coronel que lhe fora concedida por estar na mesma posição ao término da guerra. Os outros dois sentiram-se momentaneamente paralisados diante da situação em que encontraram a propriedade, antes tão próspera. Foi Afonso que lhes instilou ânimo e coragem para reconstruir a fazenda. Teve êxito e eles se uniram, convenceram o pai a fazer uso de um tesouro que tinha guardado em um cofre bem protegido no porão da casa principal. De nada adiantaria uma fortuna acumulada, se a fazenda demorasse muito a ficar novamente produtiva.
Com tudo recuperado, ela traria de volta toda a fortuna que fora gasta e mais ainda por cima. Cumpria começar logo e se adiantar. A maioria dos estancieiros estava em estado de semifalência, provavelmente demoraria a se recuperar. Os plantéis de reprodução estavam defasados e envelhecidos. Não houvera chance de repor as peças, muito menos aumentar o plantel de recria. Convencido o pai e de posse dos recursos longamente acumulados e guardados, puseram-se a campo para encontrar trabalhadores, refazendo a equipe de trabalho. Foi preciso buscar mão de obra longe, oferecer salários compensadores e trazer animais de reprodução do vizinho Uruguai.
Dessa forma, mesmo não podendo mais cavalgar como antes, participar dos trabalhos, Afonso ajudava na organização do trabalho. Dava sugestões, fazia planos e os patrões, embora mais velhos que ele, aceitavam suas palavras pois ele antes estivera envolvido diretamente no trabalho, enquanto eles pouco se ocupavam dessas atividades. Passaram longos anos na capital estudando e gastando em farras, festas, diversões variadas. Lentamente a fazenda começou a dar sinais de recuperação.
O lamentável era a tosse persistente de Afonso. Ficava cada vez mais difícil fazer esforço, ficando facilmente sem fôlego e a tosse se agravava. Corria o ano de 1847, quando surgiu a notícia de um monge italiano que, viera nem se sabe direito de onde. Havia fixado residência no morro do Campestre e descobrira uma fonte de água mineral, com propriedades curativas. Algumas pessoas seriamente doentes, depois de banhar-se algumas vezes, beber da água da fonte e usar o barro formado na beira do fluxo de água como emplastro nas pernas, nas costas, no peito ou qualquer parte do corpo atingida por algum mal, estavam, segundo se dizia, completamente curadas.
No primeiro momento Afonso ouviu cético a notícia. Depois, cansado daquela tosse, vendo que a cada dia definhava, decidiu ir até lá e tentar se curar também. Nada pior do que a morte poderia lhe advir e essa já estava próxima pelo andar das coisas com sua saúde. Os filhos o ajudaram a chegar até lá. Algumas cabanas haviam sido erguidas para abrigar os peregrinos que estavam se tratando.
Logo ao chegar encontrou-se com o homem responsável pela descoberta. Estava diante de João Maria de Agostinho, que alguns começavam a chamar de Santo Monge João Maria. A fonte era por toda parte denominada de “água santa” de Santa Maria. Notícias de curas inexplicáveis eram espalhadas cada vez com maior frequência e alcançando lugares mais distantes. Dessa forma, não tardou a se estabelecer um fluxo intenso de pessoas, de todas as classes sociais, ricos, pobres e até religiosos vinham em busca de alívio para os males do corpo. O olhar doce e sereno do monge, trespassou o corpo e a alma de Afonso. O que ouviu, depois de expor seu sofrimento, foi:
– Se tens fé, irmão, encontrarás a cura para tua doença. A fé remove montanhas. A água é o instrumento de Deus para te curar. Ponha sua confiança no Senhor Deus, em Santo Antão Abade e Nossa Senhora. Verá que em pouco tempo voltará curado para seu lar.
Depois de ouvir e perguntar se haveria alguma chance de recuperar o movimento do joelho, ouviu o homem dizer:
– Não peça o impossível. Perto de sua doença do pulmão, o movimento da perna é insignificante. Embora sabendo que para Deus nada é impossível, mas não devemos pedir mais do que o razoável.
Afonso encontrou um lugar em uma cabana, onde ele e Zulmira ficaram acomodados. Todos os dias ele ia se lavar na fonte, beber da água, mergulhar os pés na lama da margem, fazer emplastros com lama no peito e nas costas. Quando os penitentes participavam das orações conjuntas lá estavam os dois, mesmo com dificuldades, rezando com muita fé e confiança. O joelho de Afonso não sofreu nenhuma melhora, mas a tosse foi diminuindo de intensidade, a respiração ficou mais leve, o cansaço geral do corpo foi diminuindo. Depois de um mês de estadia no local, apresentou-se diante do monge e lhe agradeceu efusivamente pelo milagre de sua cura, já quase completa.
– Tu tens que agradecer a Dio. Io no tenho nenhum poder, sou um mero servidor de Nosso Senhor.
– Mas foi preciso o senhor vir de longe para descobrir essa fonte que sempre estava aí e ninguém sabia de seu poder. Por isso o senhor deve ser um santo, com toda certeza.
– Continue seu tratamento. Creio que já pode voltar para casa e voltar uma vez por mês para completar a cura.
Foi isso que fizeram Zulmira e Afonso. Pegaram carona em uma carroça que demandava Santa Maria e foram até lá. Dali conseguiram outro transporte para chegar à fazenda, onde todos os receberam com exclamações de júbilo. A transformação operada no corpo de Afonso, era algo extraordinário. Seu rosto estava novamente corado, a pele criara novo viço e até um pouco de carne começara a crescer em seus membros antes murchos e descarnados. Ninguém duvidada da ocorrência de um milagre e ele juntou-se ao rol dos inúmeros seguidores do Santo Monge João Maria de Agostinho. De toda parte as pessoas acorriam à fonte no Campestre e outra que João Maria descobrira no morro do Botucaraí, no município de Candelária. Os efeitos curativos de ambas as fontes eram os mesmos, sendo porém a do Campestre mais concorrida, por ter sido descoberta primeiro.
Em poucos meses surgiu um verdadeiro arraial no local para atender a demanda de acomodações para toda classe de gente que acorria em busca dos poderes das águas santas. Afonso ficou por longos anos visitando a fonte do Campestre regularmente e falava a todos que quisessem ouvir dos poderes sobrenaturais das águas santas.
Se antes tinha uma fé bastante frouxa, sem grande empenho na vivência de sua crença, agora se tornara fervoroso católico e frequentava, sempre que possível à missa e cultos. Praticamente todos os empregados da fazenda e suas famílias, mesmo alguns que antes nunca haviam pisado em uma igreja, buscaram alívio nas águas santas e voltaram restaurados.
Afonso formou o propósito de induzir um dos filhos a homenagear o Santo Monge, colocando em um dos filhos o seu nome. Teria que esperar algum tempo até isso se tornar realidade, mas não tinha pressa.
Décio Adams
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