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Na senda dos monges. -Capítulo II (Indo para o sul)

Botucaraí2
Botucaraí, vista do lado do rio.

Indo para o sul.

 

 

Depois de algumas semanas de caminhada, dormindo algumas noites em celeiros. A chuva torrencial e sem uma gruta para se abrigar, levaram-no a pedir pouso em propriedades ao longo da estrada. Haviam-no convidado para a refeição e aceitara apenas alimentos leves. Pão, legumes e frutas. Em várias ocasiões passara algum tempo palestrando com o proprietário da casa. Sua voz era sempre serena, embora grave. Tinha na mente passagens bíblicas, evangélicas, profecias e salmos. Sabia sempre recitar alguma parte e depois fazer uma interpretação aplicável aos dias correntes. O tropeiro lhe deixara o animal para ser usado. Quando se encontrassem novamente, poderia devolvê-lo ou então deixar em algum lugar de pouso.

Diversas vezes pernoitara na beira do acampamento de tropeiros em viagem para Sorocaba. Passou por Jacarezinho, Castro, Ponta Grossa e chegou à Lapa. Ali encontrou um maciço rochoso, com uma vertente abrupta voltada para o povoado próximo. Habituado a procurar abrigo em lugares aparentemente inóspitos, localizou uma gruta onde se fez sua morada temporária. A longa caminhada, tivera como efeito deixar os ossos doloridos. O corpo cansado necessitava repousar.  A vegetação da encosta forneceu a cama, a lenha e algumas frutas silvestres. Um pedaço de pão e uma fatia de queijo completariam a refeição frugal da noite que se aproximava. O burro encontrou pastagem e água nas proximidades, onde o deixou amarrado.

 

Nas proximidades havia um local onde os tropeiros acampavam em sua passagem. O lugar estava vazio, apenas o proprietário da pastagem onde os animais descansavam estava visível. O mesmo se deteve por um momento observando a figura estranha que passava. Havia ouvido os tropeiros falar em diferentes ocasiões de um monge que vivia em uma gruta nas proximidades de Sorocaba. Nas semanas anteriores os comentários haviam dado conta de que o mesmo vinha com vistas de ir para o Rio Grande do Sul. Teve a sensação tratar-se do indivíduo de quem ouvira falar.

Passara pelo povoado e vira a igreja. Ao redor algumas ruas com casas residenciais, entremeadas de estabelecimentos comerciais. Uma ferraria onde as carroças e carruagens eram reparadas. Ferramentas e utensílios de ferro trabalhados na bigorna, sob vigorosas marretadas. Uma marcenaria se encarregava de fazer os móveis básicos, portas e janelas. Não longe o cemitério com alguns túmulos mais antigos, outros recentes assinalavam onde estavam sepultados os restos mortais de moradores falecidos. Uma breve visita ao templo para agradecer ao senhor pelo êxito da caminhada até aquele ponto.

Ficou do final de junho até perto do começo de agosto na nova morada. Visitou o acampamento dos tropeiros onde encontrou conhecidos e assim passou a ser sabido que ele habitava uma gruta na montanha próxima. O acesso ao local era complicado e isso lhe garantia o sossego. Mesmo assim, alguns conseguiram chegar até ele, vindo por cima do maciço. No topo existia um platô, com vegetação mais densa, tendo uma clareira. Dali conseguiram encontrar o caminho até a gruta. Em poucos dias estabeleceu-se um fluxo quase diário de pessoas que o procuravam em busca de lenitivos para os males do corpo. Outros vinham buscar conselhos sempre dados com muita propriedade pelo peregrino.

Um grupo foi ao pároco padre Luís de Carvalho, pedir que o convidasse para fazer uma pregação na igreja durante a celebração da comunidade.  O pároco atendeu ao pedido, tendo antes conversado com o monge. Ele realmente tinha conhecimentos significativos da sagrada escritura e dominava o Latim. O que demonstrava seu bom grau de cultura. Segundo suas palavras desde menino convivera longamente com um eremita existente nas redondezas de sua residência. Ali aprendera o que sabia de Latim, ouvira a leitura e depois lera por sua conta os principais livros do compêndio sagrado. Isso posto, não poderia haver inconveniente em receber o homem para falar ao povo, já que membros deste solicitavam insistentemente a vinda do peregrino.

No alto do platô, na clareira ali existente, erigiu 14 cruzes, em simbolismo às estações da via sacra. Ali em determinados dias alguns seguidores se uniam a ele em oração, parando e ajoelhando diante de cada uma. Depois de recitar uma sequência de orações e invocações, seguiam até a seguinte, repetindo o procedimento, até completar as estações. Ele deixara em Sorocaba, nas proximidades da gruta, igualmente as cruzes que lhe conferiam uma característica. Depois que partiu, o hábito de irem ali rezar diante das cruzes se manteve por longo tempo.

As pessoas que o procuravam buscando alívio de seus males físicos, frequentemente lhe ofereciam recompensas em dinheiro, pelo resultado das indicações de remédios naturais. Ele não aceitava. Apenas alimentos, vegetais e alguma peça de roupa.  Nos pés sem meias usava um par de sandálias rústicas, deixando os artelhos expostos. Ficavam marcados por frequentes tropeços, arranhões em espinhos ou pedras. Carregava uma sacola de pano, onde levava os utensílios necessários à preparação de suas frugais refeições, quando dispunha do que cozinhar.

Diversos moradores da região da Lapa, relataram nos anos seguintes os assim chamados “milagres” de João Maria em sua passagem por essas paragens. No final do mês de julho ele abandonou a gruta da Lapa e empreendeu a caminhada rumo ao Rio Grande do Sul. Há vestígios de sua passagem por Rio Negro, Mafra, Curitibanos, Lages, Vacaria, chegando à Porto Alegre em 16/10/1845. Nos lugares de pouso deixou sempre alguma marca de sua passagem, especialmente quando ficava no paiol ou celeiro de alguma propriedade. Outras vezes dormia ao relento, nas proximidades de uma fonte. Quando fazia fogo, sempre se preocupava em apagar o resto, para evitar incêndios.

Em Porto Alegre fez contato com as autoridades civis e eclesiásticas. Logo percebeu que o clima na província ainda estava em franca ebulição. Fazia apenas alguns meses que as tropas imperiais haviam obtido a capitulação dos revoltosos Farroupilhas. Isso tornava as autoridades um tanto arredias com relação a estrangeiros, ainda mais pregadores da palavra de Deus. Seguiu caminho, passando por Triunfo, terra de Bento Gonçalves. Em Rio Pardo experimentou pregar e apanhou às bengaladas de José Joaquim de Andrade e Neves, provavelmente superintendente ou representante da guarda nacional. Sacudiu o pó das sandálias e seguiu.

Passou por Cachoeira do Sul, Alegrete e chegou a Uruguaiana, na fronteira com Argentina, na beira do Rio Uruguai. Embarcou em um barco e foi para Buenos Aires,  onde chegou no final de 1845. Ali apresentou-se às autoridades como costumava fazer e encontrou Juan Manuel Rosas, governador da província. Este o recebeu com amabilidade, mas logo o encarregou de ir catequizar os índios Charruas na divisa entre Uruguai e Rio Grande do Sul (Brasil). A missão fracassou pois não era evangelizador de indígenas. Por isso voltou a Buenos Aires, desagradando ao governador. Ficou detido no Palácio, impedido de se ausentar sem autorização.

No final de 1846, Rosas lhe deu salvo-conduto para ir pregar na província de Missiones. Vendo que não se adaptaria, cruzou novamente a fronteira do Brasil e se dirigiu para a região de Santa Maria da Boca do Monte, no morro do Campestre.  Ali erigiu uma cabana rústica no alto do morro, além de 17 cruzes. Habitualmente erigia 14 em referência às estações da via sacra. Suspeita-se que as três outras cruzes seriam uma para ele mesmo, uma para Santo Antão Abade e uma para Nossa Senhora. Ao chegar trazia uma imagem feita por ele em madeira, dizendo que representava o santo de sua devoção, Santo Antão Abade.

Santo Antão
Imagem de Santo Antão, feita por João Maria.

 

Como a imagem não guardava nenhuma semelhança com outras representações do santo que viveu no norte da África nos primeiros séculos do cristianismo, deduziu-se que teria usado a si mesmo como modelo, isto é, a imagem seria uma espécie de “auto-retrato”. Quando deixou o lugar a imagem ficou na ermida que havia sido erguida e foi queimada em um incêndio no ano 1951. Baseando-se em fotografias, conseguiu-se fazer uma réplica da mesma.

Além do  morro do Campestre, hoje bairro de Santa Maria, denominado Campestre do Menino Deus, João Maria também passava temporadas em outro morro próximo. O morro do Botucaraí. Nessa região ele encontrou uma fonte, que segundo suas palavras, jorra água mineral e tem maravilhosas propriedades curativas. Vejamos em suas próprias palavras:

“Em 1846, quando eu tinha 45 anos de idade, dirigi-me para um retiro solitário no Campestre, onde permaneci por onze meses, andando até Santa Maria de La Boca del Monte. Neste vasto deserto inculto descobri uma fonte de água mineral com maravilhosas propriedades curativas, e o lugar que era refúgio de tigres e leões tornou-se uma próspera vila”. (Livro de memórias do eremita Juan Maria de Agostini. WOLFE, Charles. New Mexico´s Hermit. San Miguel News. Volume 2, Fevereiro de 1925). (Extraído de “caminhosdomonge.blogspot.com.br”, de Alexandre Oliveira Karsburg, publicado em 14/12/2012).

Fonte do campestre.
Fonte das Águas Santas, nos dias atuais. Um cão se refresca do calor.

 

A notícia em poucos dias se espalhou, levando milhares de pessoas, de todas as classes sociais peregrinar, vindos de todos os lugares, inclusive do exterior Uruguai, Argentina e Paraguai, São Paulo e Rio de Janeiro, a procura das Águas Santas. Buscavam a cura e os jornais da época estão repletos de relatos de curas miraculosas. Em pouco tempo uma ermida foi erguida e surgiu uma rudimentar estrutura de apoio para receber os numerosos romeiros.

O General Francisco José de Souza Soares de Andréa, presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, tendo ainda frescas na memória as lembranças do sangrento conflito da guerra Farroupilha, ficou preocupado. Primeiro determinou que um médico fosse até o local para investigar a propalada propriedade terapêutica da água, constatando que elas nada de incomum continham, sendo as eventuais curas devidas à fé do povo. Temendo o ajuntamento de grande massa popular em torno do eremita estrangeiro, determinou que uma escolta fosse até o local e o trouxesse à sua presença para interrogatório.

Botucaraí
Botucaraí, RS.

 

No dia 17 de outubro de 1848, ao amanhecer, uma multidão de seguidores viu chegar uma escolta vinda de Rio Pardo para prender João Maria. Por pouco não acontece uma tragédia, pois o povo queria impedir à guarda de levar o monge. Ele próprio se encarregou de os acalmar, dizendo que o deixassem partir para o martírio. Assim voltaria depois mais forte e poderoso. O povo ficou sem o “santo” que já venerava como tal.

Mesmo não encontrando motivos para suspeitar do preso, Andréa, por precaução, determinou sua deportação para Santa Catarina, com proibição de retornar ao solo gaúcho. Não queria correr o risco de uma eventual nova revolta e um ressurgimento do movimento separatista, agora ancorado em uma espécie de fanatismo espiritual. O povo soube da deportação, mas continuou por muito tempo a cultuar João Maria. Muitos filhos foram batizados com seu nome, a imagem de Santo Antão feita por ele, foi venerada e as águas realizaram curas por algum tempo.

Chegado em Santa Catarina, João Maria não ficou propriamente aprisionado e aproveitou para refugiar-se na ilha do Arvoredo. Pescadores, vendo noite após noite uma pequena fogueira na encosta do morro, visível da costa, resolveram ir verificar quem era o autor de tal feito. Lá chegando, encontraram um homem, próximo dos 50 anos, cabelos longos, barba cerrada, vestido de modo semelhante a um Capuchinho. Estabeleceu-se uma relação de amizade entre ele e os pescadores. Estes se encarregaram de suprir o monge de suprimentos de alimentação. Ele por sua vez dava conselhos, indicava remédios naturais para seus males.

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Fotografia de João Maria d’Agostini, tirada em 1967, em Santa Fé, EUA.

 

Em pouco tempo a notícia se espalhou. Em fevereiro de 1849 o Padre Joaquim Gomes de Oliveira lhe fez uma visita e constatou tratar-se de um homem com domínio do latim, versado em francês e com bom domínio dos Evangelhos bem como de teologia. Reconheceu em seu relatório tratar-se de um indivíduo digno de admiração, por dedicar-se a vida rústica e cheia de sacrifícios, quando tinha cultura acima da média da população em geral. Em seu relatório constam informações importantes sobre as andanças de João Maria em território argentino, que de outra forma não teriam chegado até nós.

É possível que dessa forma as notícias chegassem a D. Pedro II que o mandou chamar à sua presença. Ao conhece-lo, ficou admirado e lhe ofereceu privilégios que ele recusou. Não era esse seu objetivo. Em compensação trouxe a amizade do imperador, uma carta de recomendação que lhe garantia liberdade de ação em suas pregações. Retornou a Curitiba, de onde passou novamente na gruta da Lapa, onde estivera anos antes. Ao que parece, peregrinou pelo interior de Santa Catarina, deixando marcada sua passagem em todos os lugares. Nos dias de hoje existe uma superposição do nome de João Maria d’Agostini, João Maria de Jesus principalmente, visto como uma espécie de reencarnação do primeiro monge.

O que sabemos hoje, por intermédio das pesquisas de Alexandre de Oliveira Karsburg, é que em 1852 cruzou a fronteira do Paraguai, indo viver no Monte Palma, hoje território argentino. Os moradores da região denominavam o morro de “El Cerro del Monje”. Há leves indicações de ter retornado à Argentina, mas por ter deixado o território platino contra a vontade de Juan Manuel Rosas, é pouco provável que tenha retornado. Talvez tenha cruzado o território na região norte em busca de um lugar para galgar a Cordilheira dos Andes em direção ao Chile em 1854. Lá ficou até 1856/57. Em 1857 passou percorreu a Bolívia, em 1858 esteve no Peru e em 1859 chegou ao México. Em 186 passou por Cuba e em 1861 chegou ao Canadá. Literalmente percorreu o continente americano de sul a norte.

Veio para os EUA, onde percorreu aproximadamente 1000km à pé, até chegar ao Novo México. Ali se alojou em uma gruta numa elevação próxima a Las Cruces. Mesmo tendo recebido indicações relativas ao perigo que isso representava, não desistiu. Deixou dito aos populares que todas as sextas-feiras acenderia uma fogueira. E assim fez. Seu trabalho de pregação e curas continuou. Em 1867 decidiu ditar suas memórias onde narrou toda sua epopeia de Eremita das Américas. O manuscrito ficou por longos anos guardado em mãos de uma família e hoje é dado por desaparecido. Em 1925/27, foi feita uma cópia, à qual Alexandre Oliveira Karsburg teve acesso e serviu em grande parte na elaboração do livro “O Eremita das Américas”.

Em 1869, uma sexta-feira não teve a habitual fogueira no alto do morro onde João Maria vivia. Seus seguidores e admiradores subiram para verificar o que acontecera. Encontraram o corpo morto, tendo ao lado os documentos dados por autoridades de diversos lugares e seus objetos pessoais. Fora assassinado, provavelmente por índios, mas nada foi apurado relativamente a isso, continuando o mistério até os dias de hoje.

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Túmulo de João Maria d’Agostini, em Las Cruces, Novo México, EUA.

 

Dessa forma, fica esclarecido o paradeiro do Monge João Maria d’Agostini, por muito tempo dado como desaparecido sem deixar rasto. Há inclusive o túmulo com o epitáfio e uma fotografia feita em Santa Fé, Novo México, em 1867, onde aparece a mão esquerda com os três dedos aleijados, sua marca inconfundível. Percorreu as três Américas, pregando o amor, penitência e prática do bem. Nem sempre foi bem visto em todos os países, que viviam nessa época a consolidação de suas nacionalidades, de modo que um pregador estrangeiro era olhado com certa desconfiança pelos ocupantes de cargos diretivos e administrativos.

Sua morte, pelo menos aparentemente, não teve nada a ver com nada do ponto de vista político. Como não foi encontrado o autor, ou autores do assassinato, não se conseguiu saber a motivação de tal ato.

Décio Adams

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