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Retorno de Gumercindo Saraiva.
Diante da impossibilidade de manter a posição conquistada no Paraná, tendo pela frente um contingente numeroso e bem armado do exército nacional, Gumercindo Saraiva, poucas horas após dominas Curitiba, ordenou a retirada. Por melhor que seja organizada tal operação, sempre acontecem fatos desastrosos. Há os que mantem a calma e conseguem fazer as coisas sem atropelos, mas também há quem se apavore e cometa tolices. Após passar os limites da Lapa, conquistada anteriormente, Gumercindo ordenou uma rápida parada para conferir a tropa. Nesse momento notou a ausência de seu ajudante João Maria.
Um soldado relatou que vira o tenente, acompanhado de um pequeno grupo, tomar um caminho que parecia um bom atalho. Depois não os havia visto mais. Não querendo deixar homens valiosos para trás, o comandante ordenou a um capitão, tendo sob suas ordens um pequeno destacamento para retornarem e procurar pelos extraviados. Poderiam estar em dificuldades, precisando de apoio. Tomada essa providência e feito o balanço das baixas, seguiram marcha com destino às margens do Rio Iguaçu.
O capitão e seu destacamento, encontraram os companheiros de João Maria, mortos no local onde foram surpreendidos por alguns pica-paus. Não haviam se dado ao trabalho de sepultar os corpos. Não tendo encontrado João Maria, supuseram que talvez ele tivesse caído prisioneiro ou então conseguira safar-se. Talvez estivesse ferido e mesmo assim conseguido deixar o lugar. Procurando entre a vegetação, encontraram sinais de passagem de um homem, aparentemente a cavalo. O lugar era o ponto em que ele se escondera para escapar da busca dos pica-paus. Depois seguiram algumas marcas, mas estavam confusas, pois os que o procuravam haviam deixado suas marcas também, tornando difícil identificar o rasto.
O capitão comandou o trabalho de sepultamento dos mortos e depois encetaram o caminho para encontrar o grosso da tropa. Tinham que se precaver da possibilidade de toparem com algum destacamento avançado das tropas federais. Isso seria sua perdição, pois estavam com pouca munição, sem mantimentos e assim era importante encontrarem logo com o restante dos maragatos. Ao encontrarem Gumercindo, já no processo de transposição do Rio Iguaçu, o capitão relatou o que haviam encontrado, deixando a dúvida no ar sobre o destino de João Maria. Sabendo de sua habilidade, esperavam encontra-lo talvez mais na frente, ou então serem alcançados por ele.
Era lamentável perder um homem de seu valor, mas não poderiam perder tempo. Agora o mais importante era retornarem ao Rio Grande do Sul o mais depressa possível. Certamente lá teriam combates pela frente. No caminho para casa, encontraram com grupos de pica-paus, aos quais deram combate, mas sempre procurando continuar para o sul. Não valia a pena perder muito tempo e homens com destacamentos de menor importância. Não iriam se render sem mais aquela. Ao alcançarem as margens do Uruguai, nem sinal de João Maria. Passaram ao outro lado e seguiram caminho na direção de Dom Pedrito.
Não havia como informar à família do extravio de João Maria. Sempre restava a esperança de que ele fosse aparecer mais dia menos dia. Depois de um curto período de descanso, reposição de equipamentos, munições e homens, reiniciaram os ataques aos grupos de pica-paus estacionados na região. No dia 20 de agosto de 1894, véspera de um ataque planejado, Gumercindo foi morto traiçoeiramente com um tiro nas costas. Os maragatos estavam perdendo terreno.
No dia 24 de junho de 1895, após um sangrento combate, onde os maragatos lutaram até a morte, ficou definida a sorte do conflito. Os legalistas, mais conhecidos por pica-paus ou ximangos, impuseram a rendição aos revoltosos. Estava selado o destino da revolução federalista, com vitória dos legalistas que apoiavam Júlio de Castilho.
Os sobreviventes dos maragatos e que não ficaram presos por estarem na liderança, começaram a retornar lentamente para suas regiões. Havia alguns da região de Passo Fundo e que conheciam João Maria. Ao encontrarem os familiares deste, quiseram lhes relatar o que acontecera. Mas, a essa altura dos acontecimentos, a família já ficara sabendo onde ele se encontrava. Estava bem vivo e casado com uma mestiça indígena na região do Rio do Peixe. Fora ferido e a jovem junto com o avô haviam cuidado dele, conseguindo restabelecer-lhe a saúde. Estava implantando uma pequena propriedade de criação de animais e principalmente extração de erva mate. Haviam recebido uma carta que ele escrevera depois de se recuperar.
Ainda não houvera possibilidade de alguém da família viajar até lá e visita-lo, mas eram informados por um tropeiro que trazia de lá os carregamentos de erva mate. Dessa forma ficaram sabendo que logo ele seria pai. Tinha feito uma boa porção de roça, plantando milho, feijão e mandioca. Colhiam na época certa boa quantidade de pinhão, sempre procurado pelos tropeiros para vender nas suas regiões de origem. O destino mais provável desse produto eram as cidades litorâneas de Santa Catarina.
Os próprios moradores reservavam um bom suprimento do produto para a sua alimentação e também dos animais domésticos. Alimento rico em nutrientes, vitaminas, proteínas e fibras e existia em abundância na região. Os vastos pinheirais de árvores centenárias, alcançando diâmetros de mais de 1,5 m em muitos casos, eram pródigos na produção desse valioso ingrediente do cardápio. Usavam-no para produzir uma espécie de farinha, socando no pilão, depois do que ele era usado em diversas aplicações, até mesmo na massa de pão.
Enquanto o conflito federalista estava nos últimos estertores, João Maria de Jesus, adotando comportamento e atuação semelhante ao do seu antecessor, percorria algumas localidades do Rio Grande do Sul. Ao ser perseguido por pica-paus, buscou refúgio nas terras catarinenses e especialmente na região litigiosa entre os estados do Paraná e Santa Catarina, que ficou conhecida como Contestado. Ali percorreu as trilhas dos tropeiros, os caminhos que levavam aos pequenos povoados e casas dos esparsos moradores. Raramente aceitava dormir em algum galpão, preferindo fazer seu pouso sob uma árvore frondosa ou em alguma formação rochosa que lhe fornecesse algum abrigo contra as intempéries.
Não aceitava dinheiro nem alimentos como carne ou derivados de animais. Sua alimentação era composta basicamente de legumes e frutas. O povo viu nele um sucessor de João Maria d’Agostini, chegando a considera-lo sua volta. Em seus lugares de pouso, fazia uma fogueirinha, cozinhava seus legumes e sempre oferecia para quem estivesse presente. Muita gente afirmava que a chuva ou vento não o atingiam, ficando o lugar em que pernoitava seco, mesmo que ao redor tivesse caído uma chuva torrencial. Dava conselhos diversos sobre a vida, anunciava a palavra de Deus, profetizava grandes catástrofes no futuro.
Indicava ervas para curar os males do corpo. Era comum fazer seu pouco ao lado de fontes e ali fincava uma cruz, feita de cedro. Pelas próprias características do cedro, era comum essas cruzes brotarem, passando a ser consideradas milagrosas. As cinzas da fogueirinha eram juntadas pelos populares e usadas como remédio para diversos males. A água das fontes passava a ser tida como milagrosa, com poderes curativos. Era por natureza calmo e pacífico. Não gostava de aglomerações, sendo por isso que se detinha pouco em cada lugar. Aconselhava, fazia suas profecias, exortava à oração e penitência, mas não permitia que fosse seguido por adeptos. Vivia sempre solitário.
Quando o nascimento do filho de Lua Serena e João Maria, ocorreu que o monge estava percorrendo a redondeza. Numa tarde, pouco antes do anoitecer, ele chegou às proximidades da cabana ampliada de João. Trovão Distante, ao ver o monge, imediatamente lembrou da figura conhecida em sua juventude, há muitos anos. Parecia ter ressurgido das brumas do tempo. A estatura era semelhante, a barba longa, o cabelo em desalinho, deixavam margem a confundir as duas figuras. Mesmo assim ficava difícil pensar tratar-se da mesma pessoa. Ofereceram-lhe lugar para pernoitar e ele aceitou, pois ali era um lugar mais rústico.
Quando João chegou da roça, trazendo no lombo de uma mula que conseguira comprar, um par de cestos cheios de espigas de milho, algumas abóboras e pasto para a vaca. Por sorte ela parira uma bezerrinha e estava produzindo uma boa quantidade de leite. Alimentava a filha e sobrava para o consumo humano. Preparavam coalhada, queijo caseiro e bebiam o leite fervido. Era perceptível a presença de um homem branco naquele lugar, dada a presença bovina, o cavalo pastando nas proximidades em um cercado.
Ao ver o monge, João teve um lampejo de recordação. Vieram à sua memória histórias contadas pelo avô Afonso, a respeito daquele Santo Monge no cerro do Campestre. Este se vestia de modo diferente, mas a figura era bem parecida. Logo ficou sabendo que o homem atendia pelo nome de João Maria de Jesus, ao que informou ter por nome João Maria, em homenagem ao outro peregrino. Fora o avô que insistira em chamar o neto por esse nome. Considerava-se devedor do Santo por ter curado sua bronquite, trazida dos campos de batalha da revolução farroupilha.
O bom homem fez questão de preparar sua comida em sua panelinha que retirou de uma bolsa, aceitou pinhões, couve, almeirão e um pouco de farinha. Enquanto esperava a hora de deitar-se ficaram conversando e em dado momento Lua Serena, crispou o rosto de modo estranho. Trovão Distante, que olhava para a neta naquele exato momento, percebeu que algo não estava direito. Aguardou mais alguns minutos e viu novo crispar na face da jovem mulher. Lembrou das horas que precederam o nascimento de seus três filhos e uma filha. A esposa tivera as mesmas reações e soube que era chegada a hora de ver o seu bisneto nascer.
Esperou mais um pouco e foi para dentro da cabana onde colocou água para esquenta, pediu a João para buscar água limpa na fonte, dizendo:
– Teu filho vai nascer. Traz água limpa para lavar criança.
João ficou boquiaberto, sem saber o que dizer. Como é que o velho tinha percebido isso? Lua não dissera nada. Será que era adivinho o bom índio? Nesse momento escutou-se um leve gemido. As contrações começavam a ficar mais fortes, provocando essa reação. Sem saber mais o que fazer, João obedeceu ao velho, indo buscar tanta água quanta podia nas vasilhas disponíveis. O monge, apenas olhou com seus olhos serenos e falou:
– Vai nascer um menino forte e saudável. E não vai demorar muito, pode ter certeza.
Mais um profeta, pensou João. Primeiro Trovão adivinhando e agora o monge predizendo um nascimento rápido e sem problemas. Temia pela vida da mulher e do filho. Lembrou da hora em que perdera Ceci, ao dar à luz a filha Isabel. Devia a vida da filha à coragem da parteira em abrir o ventre da mulher já morta, a tempo de retirar a criança, meio asfixiada. Com muito esforço trouxera à vida de volta ao pequeno corpinho.
Vendo a serenidade dos dois velhos, decidiu confiar na sorte e ajudou Lua a entrar na cabana. Lá fora o luar clareava por entre as folhas dos pinheiros e ervais. Em pouco mais de duas horas, tendo Trovão ao lado acompanhando o andamento, finalmente Lua expulsou o filho de seu ventre. O velho amparou a criança, pedindo para João trazer a faca que esterilizara no fogo e cortar o cordão umbilical. Imediatamente ouviu-se um vigoroso chovo de criança. Depois de ser posto nos braços da mãe que o acariciou, lavaram o pequeno e o agasalharam. Mesmo sendo ainda outono, o ar da noite era frio e urgia abrigar o pequeno corpo.
Alguns minutos depois uma boca gulosa tomava o bico do seio da mãe, não demorando a dominar a maneira de dali retirar o alimento de que precisava. João, depois de ver o filho nos braços da amada, colocou-se ao lado deles, pondo-se a fazer carícias em um e outro. Depois de esvaziar um peito foi a vez do outro que já escorria leite. Não foi capaz de mamar tudo. Ficaria sobrando um pouco para a próxima etapa.
Nesse momento o monge entrou na cabana, onde recitou uma benção sobre a nova família que surgia. Depois que terminou, externou suas congratulações ao bisavô, ao pai e à mãe, desejando saúde a todos. Depois procurou um lugar, ao lado da cabana, onde o tronco de um pinheiro lhe oferecia lugar para se encostar e acomodar os ossos para dormir. Em alguns minutos ressonava serenamente. João Maria, excitado demais com o nascimento do filho, demorou a deitar-se. Não cansava de olhar embevecido para o pequeno que dormia tranquilamente ao lado da mãe. Esta por sua vez também, cansada do trabalho de parto, dormia a sono solto. Em dado momento acordou e perguntou:
– Você não vem dormir?
– Eu já vou. Acho que vou buscar mais um pouco de água e avivar o fogo. Depois deito no chão aqui ao lado de vocês.
– Vem deitar aqui junto de seu filho, querido.
Ela aprendera algumas palavras carinhosas, que antes lhe eram desconhecidas. Adaptara-se a alguns costumes brancos que João lhe ensinara gradualmente. Depois de deixar suprimento de água para a noite e avivar o fogo, deitou-se com todo cuidado para não correr o risco de machucar o filho, nem a mãe. Ao amanhecer o velho monge não estava mais visível. Apenas o local onde dormira estava marcado com as ervas amassadas. O foguinho estava apagado, ficando apenas as cinzas no lugar. Alguns dias depois ficaram sabendo que ele passara pela casa de Francisco, onde fora comprada a vaca. Mais tarde estivera no povoado e seguira caminho rio abaixo, pela margem. Onde havia uma trilha ele entrava para procurar moradores. Não os encontrando retornava e ia em frente.
Logo ao levantar-se Lua foi tomar banho no córrego. Estava suada e queria recobrar o vigor de seus músculos, ainda um pouco doloridos. Sentia-se estranha. Nos últimos tempos estava pesada e com dificuldades de caminhar. Agora era diferente. O peso adicional da criança e acessórios haviam sumido. O quadril estava ligeiramente dolorido da dilatação havida para a ocorrência do nascimento do filho. Seria importante cuidar por algum tempo com esforços para não ficar com problemas. Levou-se atentamente, sentindo a água fria revigorar seu corpo e o espírito. Quando retornou João já estava ali com a vasilha cheia de leite que fora tirar da vaca.
Trovão nesse momento saia da cabana. Fora dormir mais tarde do que o normal. O ar frio da manhã atrasara a hora habitual de acordar. Também o recém-nascido resolveu dar sinal de vida. Mamara mais duas vezes de madrugada e agora reclamava a cota matutina de alimento. Seu rostinho ainda estava um pouco inchado, os olhos semiabertos, como que espiando o mundo ao seu redor. Quando a mãe o pegou e aconchegou ao peito, imediatamente abocanhou um mamilo de onde já começava a escorrer o leite.
Enquanto o filho se alimentava, João preparou uma chaleira com chá de erva, além de colocar uma parte do leite recém tirado para ferver. A água amanhecera ainda quente sobre o fogo, bastando colocar um pouco de lenha e logo havia água quente em abundância. Com o nascimento do menino, a carga de trabalho para João ficou ligeiramente aumentada, pelo menos enquanto Lua se refazia do parto recente. Mal o dia raiava, ia o homem, agora plenamente refeito do ferimento, para a roça colher o milho. O feijão estava colhido há tempo e havia sido replantado para a segunda safra. Com a sobra de feijão, fora comprada a mula de carga. Tordilho ficara agradecido por não mais ser obrigado a carregar as cargas. Era afeito a outras atividades.
Depois de colher o milho, debulhar uma parte, João levou o produto, junto com uma remessa de erva mate e pinhão para o povoado. Conseguiu auferir um bom dinheiro e o guardou em vários pontos de sua roupa. Se ocorresse de alguém lhe roubar, havia uma chance de não levar tudo. Ter pouco era melhor que nada. Comprou os suprimentos necessários e empreendeu o retorno para casa. Nessa viagem pensou se não seria melhor ter mais uma ou duas mulas e abrir uma trilha até onde pudesse seguir por terra ao transportar suas mercadorias para vender. Descer o rio de barco era fácil, mas na volta era uma dificuldade enorme.
Nos próximos dias foi até a casa de Francisco se informar da possibilidade de se unirem e fazer uma trilha até o povoado. A ideia agradou ao vizinho bem como aos filhos. Também estavam aumentando sua produção e sentiam o mesmo problema para o transporte. Se dispusessem de um barco com motor, seria mais fácil cobrir o percurso, mas na força dos braços era muito cansativo, obrigando a frequentes paradas para descanso. Decidiram aproveitar o período de inverno, quando não havia tanto trabalho a fazer para se ocupar dessa empreitada.
Assim ficaria mais fácil também a ida de pessoas até a cabana para comprar diretamente os seus produtos. No meio do caminho havia outros moradores e todos se uniram no trabalho, terminando em poucos dias a abertura do caminho. Com algum trabalho de movimentação de terra, teriam até uma estrada carroçável, sem muito esforço. No momento não tinham recursos para adquirir uma carroça, mas era intenção futura terem esse equipamento à disposição. Seria possível transportar uma quantidade significativamente maior de produtos do que em lombo de mulas e no barco. A trilha inicial foi estendida pela margem do rio acima, até outros moradores localizados a poucos quilômetros dali. Estava-se formando uma comunidade ribeirinha. Suas forças unidas os tornaria mais fortes em conjunto.
Mal haviam terminado de abrir a trilha, era hora de preparar o terreno para nova lavoura. A mandioca plantada no ano anterior, ficou, depois de cortadas as ramas, para rebrotar e produzir raízes maiores no próximo ano. O solo ainda um pouco compactado e cheio de raízes tornava mais difícil o desenvolvimento do produto. Tinham conseguido comer alguma mandioca cozida e preparado um pouco de farinha. Tudo era difícil nesses tempos iniciais. João esperava um dia poder fazer essas coisas com alguma automatização, talvez construindo uma roda movida a água para acionar os mecanismos. O riacho permitia a instalação de uma boa fonte de energia mecânica, sem necessidade de consumo de combustível, nem causar poluição. O custo de instalação era imensamente menor. Poderia, dependendo da energia disponível, instalar até um pequeno moinho para fazer fubá, debulhar milho e limpar das impurezas.
Eram projetos de futuro, mas possíveis de serem executados. Quando o inverno ia para o fim, o filho já estava comendo sopinha de legumes e um belo dia, no final de agosto, tiveram uma surpresa. O irmão caçula de João, em companhia do um dos filhos de Francisco, chegou à cabana. Viera acompanhando uma tropa de cargueiros em busca de erva mate e pinhão. A família inteira estava morrendo de saudades, especialmente depois de receberem a última carta onde eram comunicados do nascimento do filho de João. Isabel quisera vir junto, mas os riscos da viagem eram muito elevados. Quando os caminhos estivessem melhores ela poderia vir conhecer a nova esposa do pai e o irmão.
O velho Trovão Distante estava realizado. Vira nascer o bisneto e sabia que seus dias estavam chegando ao final. Teria no máximo mais um ou dois anos de vida e iria se juntar aos antepassados nos campos celestes de Tupã. Recebeu afetuosamente o irmão de João. O tempo que o Pedro poderia ficar não era longo. Em menos de uma semana os companheiros pretendiam empreender a viagem de retorno. A mãe Isabelita estava adoentada e pedia sempre que o filho fosse visita-la, antes de chegar sua derradeira hora. João ficou comovido com a visita e começou a imaginar uma forma de visitar a família. No momento isso seria impossível. O filho era muito criança, deixar Lua e Trovão sozinhos seria uma temeridade e leva-los com ele, não haveria quem cuidasse dos animais e da cabana.
Depois de conhecer os arredores, a exuberância da floresta, os faxinais próprios para fazer roça com facilidade, as pastagens naturais em lugares mais baixos até o começo das encostas. Com muita facilidade poderiam criar ali um bom número de animais de corte. Estava mesmo procurando um lugar para levar uma parte do rebanho da fazenda, onde o espaço estava ficando pequeno para um lugar mais amplo. João também era em parte dono da fazenda e do gado. Veria com os pais a possibilidade de trazer um lote de novilhas e touros para colocar ali iniciando uma bela criação. Quando estivessem instalados, seria hora de João levar Lua e o pequeno sobrinho a conhecer os avós. Isso poderia ser resolvido em pouco tempo.
João gostou da ideia e isso vinha facilitar as coisas. Há tempo pensava na forma de ampliar a criação, mas não dispunha de dinheiro para comprar as reses iniciais. Diante da proposição de Pedro, ficou entusiasmado. Haveria algumas dificuldades para trazer o gado, pois as trilhas ainda eram precárias. Teriam que providenciar passagens em alguns lugares. As mulas eram mais aptas a percorrer caminhos mais difíceis do que vacas e bois. Ao informar Lua dos novos planos ela ficou levemente assustada. Nunca imaginara ter ali, naquele sertão, uma quantidade significativa de gado bovino. Conhecera a vida pescando e caçando, colhendo o que a natureza dava. Agora estava em vias de ser esposa de um proprietário de gado.
No dia marcado, João e Pedro desceram tangendo as mulas para o povoado. Levavam um suprimento de erva mate, um pouco de milho e feijão, além de um bocado de pinhão. Seria em parte destinado aos familiares, mas Pedro fez questão de pagar, pois não seria justo levar os suprimentos que iriam fazer falta ao irmão, até o momento de sua volta. Esperava em, no máximo, dois meses estar retornando com um bom lote de novilhas e dois ou três touros jovens para iniciarem a criação ali. Teriam uma filiar da fazenda da família, situada nas proximidades do Rio do Peixe.
No Rio Grande do Sul estava-se cuidando de cicatrizar as feridas abertas pelo recente conflito, devido ao qual João viera parar ali. Enquanto o irmão viajava de retorno para casa, ele estava inebriado com as novas perspectivas de futuro. Ali havia terras em abundância, era férteis e as florestas eram ricas em caça, pesca, além dos produtos para extração como a erva e o pinhão. Isso, aliado à criação de gado, faria deles uma pequena potência econômica em pouco tempo. João buscara nas tropeadas construir a sua vida. As mudanças políticas, construção de estradas de ferro haviam mudado as perspectivas. Via agora renascer a esperança de alcançar uma posição mais destacada na vida econômica.
A família ficou entusiasmada com as notícias trazidas por Pedro. Sem demora trataram de selecionar um lote de 100 novilhas, além de 50 vacas em começo de gestação. Adquiriram por troca com um vizinho, três touros jovens e de boa formação. Um mês e pouco depois de retornar, Pedro partiu, acompanhado de um grupo de mais três peões, tangendo a tropa rumando para as terras devolutas do contestado. Pouco lhes importaria se o lugar onde estavam se instalando ficasse em território paranaense ou catarinense. O que lhes importava era dispor da terra e poderem começar ali a criação.
Enquanto isso João tratou de resolver os problemas do caminho para permitir a passagem do gado que o irmão logo estaria trazendo para ali. Os vizinhos ficaram sabendo da novidade, colocando-se à disposição para ajudar na solução dos problemas da estrada. Escavaram o terreno em alguns lugares, fizeram pontes para permitir a travessia dos animais. A presença de uma tropa desse porte, serviria de fonte de matrizes para os próprios sitiantes das redondezas. Na medida em que o rebanho dos Batista crescesse, haveria novilhas em número suficiente para, aos poucos, colocar mais animais nos pastos de todos eles.
Quando Pedro e seus peões, trazendo mais de 150 cabeças de gado, chegaram a região, causando um razoável espanto, as trilhas estavam em condições de serem percorridas por eles. Com calma e cuidado levaram a tropa, chegando ao lugar de destino, onde uma ampla pastagem estava pronta para recebe-la. Era uma área bastante grande, contígua à outra, separada da primeira, por uma estreita faixa de floresta de alguns pinheiros e uma boa porção de arbustos de erva mate. Havia água em abundância, o que era primordial. Os peões que vieram junto, ficariam nos primeiros meses no lugar, ajudando a preparar algumas instalações necessárias ao manejo do gado. Por sorte, madeira não faltava na região.
Lua e Trovão foram assistir à passagem da tropa, ficando extasiados com tantos animais num único grupo. Trovão tivera oportunidade de ver algumas tropas no tempo de juventude, mas jamais passara tão perto dele como essa. Estavam a poucos metros de distância. Os animais, ao chegarem ao destino e serem deixados em repouso, puseram-se sem demora a pastar avidamente. O capim ali era mais abundante do que o lugar de onde haviam vindo. Os animais sentem no ar a direção em que ficam os cursos d’água ou fontes para irem beber. Depois de passar determinado tempo comendo, começaram a caminha, quase ao mesmo tempo, dirigindo-se para o córrego onde se puseram a beber água limpa e fresca. Ali perto havia um bosque com pouca vegetação rasteira e ali eles se acomodaram para ruminar. Passaram longo tempo remoendo o capim ingerido.
Depois começaram gradativamente a levantar-se e voltaram a pastar novamente. Estavam acostumados a viverem em grupo, por isso não se afastavam muito. Dessa forma ao anoitecer havia um bom pedaço de capim bastante rebaixado e os animais escolheram o bosque novamente para repousar. Os peões acamparam nas proximidades, fizeram uma fogueira e se prepararam para passar a noite, coisa que era comum em suas vidas. Traziam, amarrado na sela, o poncho que lhes servia de agasalho contra o frio e proteção contra eventuais chuvas.
Ao amanhecer estavam em pé, vendo os animais começar a rotina de pastar, ruminar, beber água e descansar. Era a sua atividade de cada dia. Enquanto isso um foi buscar água para aquentar, outro limpou a cuia e providenciou a erva para o chimarrão. Traziam nos alforjes charque, alguns pedaços de pão para matar a fome. Depois de tomarem bastante mate, foi o momento de chagarem os irmãos João e Pedro para vistoriar o estado do gado. Ficaram satisfeitos ao verem de longe, de um ponto mais elevado, aquela tropa de animais pastando tranquilamente. Dali mesmo viram a fumaça do fogo que os peões haviam feito e desceram até eles.
Ao chegarem lhes foi oferecida uma cuia de chimarrão que aceitaram com prazer. Conversaram sobre os detalhes do trabalho que seria feito naquele dia. Era preciso fazer uma separação dos animais em lotes para permitir a cobertura das novilhas sem que houvesse brigas entre os machos no período de cio das fêmeas. Separaram as vacas prenhes e as conduziram para o outro lado do mato, colocando-as na outra área de pasto. Ali ficariam mais tranquilas.
Pedro havia trazido ferramentas para cortarem mourões e fazer entalhes, falquejar peças de madeira e construir uma mangueira. Nos momentos de manejo, marcação e outras atividades precisariam reunir o gado em um lugar fechado. Do contrário não haveria como fazer o serviço sem um grande contingente de homens. Não tinham condições de contratar muitos empregados e precisavam se virar com o que dispunham. Foram dias de trabalho duro. Enquanto dois cuidavam do pastoreio, os demais cortavam troncos, cernes e madeiras mais finas para fazer as travessas e escoras. Em pouco mais de uma semana, tinham uma boa quantidade de madeira pronta. Deram início à construção, cavando buracos e assentando ali os postes, colunas, e mourões.
Aos poucos surgiu uma instalação semelhante ao que existia nas estancias no Rio Grande do Sul. Além da construção das instalações para o gado, era necessário fazer o plantio e conservar as plantações limpas para haver o que colher no próximo outono. Haveria mais gado para comer e no inverno as pastagens ficam menos viçosas e mesmo chegam a secar, nos anos de estiagem. Isso tornara preocupante a questão de alimento para o gado. Um pouco de milho e outras formas de forragem, serviriam para suplementar a alimentação deficiente da pastagem. Aproveitaram os dias entre uma etapa e outra da construção, para fazer o plantio. Em três o serviço andava mais depressa. O espaço destinado ao plantio, fora aumentado por João na época certa e isso iria garantir um bom suprimento de milho, mandioca e mesmo as ramas da mandioca, devidamente guardadas.
Décio Adams
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