Embarcando para a morte!
Olhando esse grupo de pessoas, ao lado do avião que os levaria para o destino Medellin, Colômbia, nota-se um ar de alegria, confiança e crença na gloria que esperavam conquistar em poucos dias. Dariam o penúltimo passo no rumo da conquista do primeiro título da Associação Chapecoense de futebol. Eram, em sua maioria, jovens na faixa entre os 20/30 anos. Entre eles havia também os dirigentes, técnicos, jornalistas, formando ao todo mais de 70 pessoas.
Não sabiam que estavam prestes a iniciar as últimas quatro horas de suas vidas. Quando estavam prestes a chegar ao destino, após uma viagem de quatro horas e vinte minutos, encontraram a morte em um trágico acidente, cujo desfecho estava traçado desde o princípio pela insensatez do piloto e sua equipe em terra, ao optar por fazer o percurso sem realização e escala para abastecimento, contando com o fator sorte, para pousar no limite extremo de sua autonomia de combustível. A torre de controle do aeroporto próximo deu o alarme, além de um posto policial situado nas proximidades do ponto em que ocorreu a queda do aparelho, permitindo assim um acesso rápito das equipes de socorro, que pouco puderam fazer, uma vez que dos 77 ocupantes, incluindo os tripulantes, somente seis sobreviveram.
Dos sobreviventes houve um que ficou sob os escombros por cerca de oito horas até ser resgatado e é quem até agora está em condições mais severas de saúde. No prazo de 15 horas todos os corpos estavam resgatados e transportados para o IML de Medellin. Enquanto os socorristas e médicos se esmeravam em tratar dos sobreviventes, Medellin e toda Colômbia se confrangia em transe de dor, unindo-se aos brasileiros, dando-nos um exemplo inimaginável de solidariedade e amor. As demonstrações de dor e compaixão se multiplicavam por todo país, bem como ao redor do mundo. Não tardou a surgir a notícia de que o Atlético Nacional, clube que a Chapecoense iria enfrentar na noite do dia 30 de novembro, no estádio Athanásio Girardot, havia solicitado à Conmebol, entidade dirigente da competição, que o título em disputa fosse concedido ao clube catarinense.
Enquanto no Brasil as competições de futebol eram paralisadas por uma semana, o resto do mundo prestava homenagens das mais diversas formas. Eram minutos de silêncio guardados antes do início das partidas, faixas pretas, em sinal de luto nos uniformes, escudos com as cores da chape colocados no peito dos jogadores ao lado dos próprios. Alguns trocaram as cores tradicionais pelas cores da Chape, exibiam faixas onde se podia ler frases como “Força Chape”, “Somos todos Chape”, “Campeões eternos” e outras formas de homenagear os mortos, bem como os sobreviventes.
Sem dúvida, o maior exemplo de solidariedade veio do povo colombiano. Em menos de 48 horas convocaram todos os torcedores do Atlético Nacional e população em geral, para comparecer ao Estádio Athanásio Girardot, no dia 30/11, no horário em que deveria realizar-se a partida entre as duas equipes. O estádio ficou locado. Por toda parte havia bandeiras da Chape, camisas com as cores e escudos, faixas com dizeres de ânimo e estímulo. Uma belíssima homenagem, que teve a duração equivalente à da partida se fosse realizada. Autoridades de todos os escalões se fizeram presentes rendendo seu preito aos mortos do acidente. Nas ruas havia sinais de dor e tristeza por toda parte. Houve um repórter de um jornal brasileiro que perguntou a um colombiano, o que explicava tamanha grandiosidade, diante da dor alheia e ele respondeu mais ou menos assim:
- O povo colombiano passou décadas sob o flagelo da guerra civil (FARCS x Governo), cartel do narcotráfico, além de ser atingido, com relativa frequência, por abalos sismicos. Estes acontecimentos levam o povo em geral a desenvolver o espírito de fraternidade, de amor e caridade. O tratado de paz está em vias de implementação, enquanto o auge dos conflitos do narcotráfico está superado há alguns anos.
Notamos que o sofrimento forja o espírito no comportamento fraterno e solidário. Que nos sirvam de exemplo. Pelo menos é o que parece haver acontecido nos primeiros dias pós tragédia. De norte a sul os clubes brasileiros se propuseram a ceder atletas à Chape, visando a recomposição do plantel. Ofertas de ajudas financeiras, propostas de manter o time imune às regras do ascenso/descenso dentro das competições por três ou quatro anos (que já foi rejeitada pelo clube). Em todas as concentrações de torcedores de diferentes clubes, houve manifestações de união, solidariedade, carinho, amor e harmonia. As cores dos clubes foram momentaneamente esquecidas, surgindo em seu lugar a cor da fraternidade. Oxalá tais manifestações se estendam por longos anos, substituindo as frequentes brigas, agressões e muitos casos de morte ocorridos durante os confrontos. Tenho em minha concepção que o esporte tem por finalidade o congrassamento, a confraternização entre os torcedores e até entre os adversários, uma vez terminada a competição. Durante milênios os seres humanos se enfrentaram em guerras intermináveis e ainda hoje isso acontece, porém, as armas são tão letais que a proximidade entre os combatentes é algo raro de acontecer. O encontro dos “combatentes” agora acontece nas partidas das diversas modalidades esportivas. Em milênios passados era costume realizar o combate com espadas, lanças, maças e outras armas curtas, numa arena, enquanto a turba se deleitava com o resultado do encontro. Após os combates sangrentos e mortais, os assistentes voltavam para casa saciados por algum tempo, até que outro evento fosse realizado.
É de esperar que nos dias atuais os seres humanos estejam mais evoluidos. Tenham desenvolvido modos mais civilizados, onde a sede de sangue e violência seja substituida por reações mais brandas e fraternas. As reações aos pequenos choques, as inevitáveis escoriações que decorrem do entrechocar dos corpos e membros durante as competições, podem perfeitamente ser reduzidas a um pedido de desculpas, uma eventual punição com cartão amarelo ou vermelho, como é habitual. Não existem mais motivos para agressões em campo, ou mesmo sua extensão às arquibancadas entre os torcedores dos times em disputa no campo de jogo.
Estamos, ou pelo menos estivemos, muito próximos de uma generalização dos conflitos intra e extra campo nas competições esportivas, talvez até maximizadas pelos conflitos sociais, onde grassa o ódio entre os partidários de diferentes facções políticas. Sem dúvida está mais do que na hora de apaziguar os ânimos para que se volte a viver em paz, harmonia e serenidade. O clima de ódio e rancor que se instalou na sociedade, levando a conflitos de rua por questões de trânsito de menor importância, precisa ser banido de nosso meio. É tão mais bonito dizer: “Perdão, meu amigo. Vamos ver como podemos reparar esse dano em seu veículo.” Ou “Tudo bem, amigo. Foi só um arranhão e nem vale a pena fazer por isso um vendaval”. Hà um imenso estoque de palavras mais cordatas que podemos usar em lugar de xingamentos, ofensas, palavrões, grosserias das mais diversas, quando ocorre um fato desagradável no trânsito. Um comportamento mais gentil, nos semáforos, nos pontos de congestionamento e passagem de pedestres, com certeza será muito mais produtivo do que sermos grosseiros, bruscos e mal-educados.
Durante longo tempo o Brasil esteve relativamente afastado da Colômbia nos relacionamentos políticos e mesmo econômicos. Foi logo desse povo, de per si tão sofrido e maltratado ao longo dos anos, que nos vem uma demonstração tão generosa de amor, carinho, solidariedade. Em pouco mais de três dias todos as vítimas foram identificadas, os trâmites legais realizados e os corpos puderam seguir para seu destino, onde os esperavam familiares, amigos e inúmeros torcedores, para render-lhes as últimas homenagens, antes de serem levados para o local de seu descanso definitivo. Quero sugerir a todos os brasileiros que doravante tenhamos os irmãos colombianos em altíssima conta de estima, elevado grau de consideração, depois da inigualável demonstração que nos deram nos momentos trágicos pelos quais passaram um grande número de concidadãos nesse evento triste. As famílias das vítimas certamente nunca esquecerão dos gestos de solidariedade recebidos.
Agora, passado o momento crucial do translado dos corpos, o velório e sepultamento, é chegada a hora de daz vazão às lágrimas, descarregando toda tensão e dor acumuladas nos dias anteriores. Sem essa catarse, será difícil existir um recomeço de vida. Evidentemente, esse processo é diferente para cada pessoa. Alguns processam esses traumas em menos tempo, enquanto outros levam meses, até mesmo anos para superar minimamente esses momentos. Mas há necessidade de começar em um determinado instante. É impossível viver para o resto dos dias com o fardo dessa dor. Ela aos poucos precisa ser convertida em saudade, tornando-se então um sentimento mais suave, um peso menos opressivo. Há muitas crianças, até fetos por nascer, que ficaram órfãos e jamais verão os pais. Irão ter a necessidade de receber as informações adequadas. Só assim serão capazes de conviver com essa saudade de alguém que sabem ter existido, mas que nunca tiveram oportunidade de abraçar, beijar ou mesmo sentar em seu colo.
Nesses momentos sentimos o desejo de que todos aprendessem a conviver com fraternidade. Isso transformaria o mundo em um verdadeiro paraíso. Mas, lamentavelmente sabemos que a memória é curta. Não se passarão muitos meses e teremos a repetição de muitos eventos que desejaríamos estarem banidos para sempre. Poderemos nos considerar felizes se algumas pessoas, que tiveram contato com essa tragédia e seus desdobramentos, tiverem aprendido a viver de modo mais harmônico. Sem dúvida isso será um passo gigantesco no sentido do crescimento da nossa sociedade. Se evoluimos paulatinamente, durante milhares e milhares de anos, um passinho a mais, sempre será significativo.
Curitiba, 12 de dezembro de 2016.
Décio Adams
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